“O ÚLTIMO EPISÓDIO” – Memórias para se sentir bem
Há uma expressão em inglês para se referir àquele tipo de filme que deixa uma sensação de conforto e de alegria quando o vemos: feel good movie. Possivelmente, pode ser incomum iniciar um texto sobre O ÚLTIMO EPISÓDIO com uma expressão estrangeira, dada a brasilidade do novo trabalho da produtora Filmes de Plástico. O primeiro argumento a favor desse início poderia ser evidenciar que a experiência de assisti-lo realmente proporciona reações prazerosas, mas ainda faltaria algo. Outra ideia seria analisar o quanto a narrativa parte de convenções de Hollywood para subvertê-las em função de quebras de expectativas e de traços culturais brasileiros. Esta perspectiva pode ser válida, desde que inclua também a sensibilidade para o registro de memórias em toda a produção como uma espécie de feel good memory.

O tal episódio final que dá nome ao filme é a conclusão do desenho Caverna do Dragão, lembrado também por nunca ter ido ao ar, o que levou ao surgimento de várias teorias sobre seu desfecho. Erik é um garoto de 13 anos, fascinado pela obra e apaixonado pela garota nova da escola chamada Sheila. Para impressioná-la, ele jura que tem o episódio final gravado em uma fita cassete e combina de assistir junto com ela. Por conta disso, ele precisa correr contra o tempo para solucionar a mentira com a ajuda dos melhores amigos Cassinho e Cristiane.
Maurílio Martins parte de códigos visuais e narrativos associados a produções hollywoodianas. A importância dada à Caverna do Dragão remete à temática da nostalgia e agrada um público fã do desenho e saudoso da década de 1990. A decisão de Erik de filmar uma versão fictícia e improvisada do último episódio com os amigos lembra à trama de “Rebobine, por favor“. E a dinâmica de jovens “impopulares” que se fecham em um grupo unido para lidar com o período escolar pode aludir aos filmes colegiais produzidos nos EUA. Porém, o diretor vai além da simples emulação de estilos e situações importados. Diversos elementos típicos de um Brasil popular daquele período estão presentes: por exemplo, a canção “Doce mel” da Xuxa, a “mineirice” das expressões e do ritmo de fala dos personagens em uma história situada em Contagem e o senso de comunidade criado entre as famílias de Erik, Cassinho e Cristiane e os vizinhos.
Tais elementos, inclusive, permitem que a narrativa se desvie do núcleo central e isso não se torne um problema. A princípio, o problema principal a ser resolvido seria a filmagem do episódio final, mas a preocupação do diretor logo se torna o registro visual de memórias de alguns passados a partir do cotidiano comum. Pode ser a recordação do Brasil dos anos 1990 através de obras de arte ou das vivências simples de um bairro na região metropolitana de Belo Horizonte. Então, um modo de vida analógico se sobressai, quando jovens, ao invés de passarem horas nas redes sociais e no celular, escutam música, andam de bicicleta pela cidade e brincam de formas variadas com os amigos. Além disso, a encenação é alterada para incorporar imagens de arquivo que mostram o desenvolvimento da vida comum, sobretudo quando a narração de um Erik mais velho lembra sua infância e a rotina no bairro Laguna. A preocupação passa a ser, então, acompanhar o desenrolar do cotidiano sem sobressaltos nem idealizações porque pode conter a exploração da mãe do protagonista nas longas jornadas de trabalho, a perda de moradias por culpa de grandes imobiliárias e as lacunas sentidas por um filho sem pai.
Erik é constantemente comparado com o pai, devido à personalidade, ao gosto por bandas de rock e ao apelido doidinho em referência a ele. No entanto, pouco sabe dessa figura paterna, exceto por algumas lembranças e relatos de amigos ou vizinhos. Sendo assim, a trajetória do garoto também compreende a busca por um passado desconhecido e a conexão com aquele homem. Nesse sentido, o humor e o drama caminham juntos pela viagem no tempo que ele faz a partir de diferentes tipos de registro da memória. Em primeiro lugar, há os relatos primários daqueles que conheceram o pai e trazem visões positivas de um sujeito sonhador, criativo e amoroso. Em contrapartida, existem as versões secundárias e negativas de quem ouviu histórias sobre um homem que teria problemas psicológicos, como o menino que o provoca na rua. É possível ainda observar as imagens caseiras de arquivo que mostram o pai animado fazendo alguma atividade, algo que só é apresentado aos espectadores. Isso porque as imagens que poderiam ser vistas por Erik estão em uma fita que ele tem receio de assistir. E quando finalmente vê, o reencontro com aquelas vivências o leva a experimentar fortes emoções diante do pai ausente.
A utilização de diferentes tipos de texturas e registros de imagens não apenas possibilita enquadrar certas características de um bairro, de uma comunidade, de um período histórico ou de uma relação entre pai e filho. O passado não é a única temporalidade a ser preservada, já que o presente precisa passar pelo mesmo processo para ter sua importância reconhecida. Logo, a convivência de Erik com os amigos, a filmagem do episódio final do desenho e outros conflitos surgidos na trama são, pontualmente, retratados com traços visuais que remetem às ilustrações de uma história em quadrinhos, às imagens em película de uma gravação de filmadora clássica para a época e as reproduções de arquivos mais antigos com tecnologias analógicas. A história em quadrinhos e os vídeos são expressões artísticas que podem capturar o presente em curso e conservá-los como memórias a serem lembradas no futuro. Em outra possibilidade, é viável pensar que as duas atividades criativas informam sobre uma característica do protagonista (o passatempo de desenhar) e a solução do impasse com Sheila (filmar o episódio final).
Quando o presente está em foco, Erik não monopoliza as atenções mesmo que tenha o protagonismo. Os dois amigos também possuem seu próprio espaço para que suas personalidades sejam desenvolvidas e conflitos específicos sejam enfrentados. Cristiane tem um temperamento forte digno de quem não leva desaforo para casa, o que a fez receber o apelido Cristão. Gosta tanto de ouvir a canção “Doce mel” que chega a incomodar os colegas. E ela precisa lidar com a ausência da mãe, que viajou a trabalho para os EUA. Já Cassinho parece mais diplomático e moderado enquanto os outros dois são mais impulsivos. Adora cantar e danças músicas estrangeiras. E ele precisa lidar com as pressões da mãe para fazer parte de suas fortes crenças católicas. Como grupo, a obra valoriza as interações do trio porque atravessam momentos dramáticos de desentendimento entre eles, de aventura quando precisam recuperar a câmera roubada e de humor ao se prepararem para apresentar no festival de artes e cultura da escola. Mais uma vez, o romance platônico de Erik se torna coadjuvante em comparação com a dinâmica dos amigos.
“O último episódio” não esquece o gatilho que chama a atenção do público. Na abertura, a narrativa não linear coloca como primeira cena a chegada de Sheila até a casa de Erik para assistir ao suposto episódio final de Caverna do Dragão. A partir daí, retrocede-se no tempo para mostrar como tudo levou àquele momento. O interesse pela conclusão da sequência inicial se dilui assim que Maurílio Martins evidencia que o filme tem muito mais a dizer. Quando ela enfim acontece, a quebra de expectativa bem-sucedida não vem apenas da reviravolta que ressignifica o tão sonhado encontro para o primeiro beijo. A ruptura também é construída com a percepção de Erik e dos espectadores de que a imaginação de um desfecho para o desenho não é o elemento mais importante da trama e da narrativa. O fortalecimento de laços familiares e fraternais é o que importa a partir do instante que o protagonista percebe que a conexão com a mãe e os amigos define quem ele é. E isso é feito com um retrato doce e carinhoso das memórias que criamos ao longo das diferentes fases da vida.



