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“OS ÚLTIMOS CZARES” – A história vista por cima

De acordo com a tese do historiador Eric Hobsbawm, o século XX seria um breve período da História, compreendido entre a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914 e a derrocada da URSS em 1991. Para ele, o conflito bélico internacional seria a superação definitiva da ordem aristocrática europeia e a preparação para uma nova realidade histórica, na qual haveria a influência do socialismo e diferentes oposições a essa nova doutrina até o fim de seu maior representante na década de 1990. Parte importante desse contexto é retratada pela série OS ÚLTIMOS CZARES da Netflix, ainda que com resultados medianos.   

Cartaz de “Os últimos czares”

A produção intercala momentos dramatizados por atores e depoimentos dados por pesquisadores da História da Rússia para contar os últimos anos da monarquia czarista no país. Os estilos ficcional e documental se combinam para desenvolver três linhas narrativas que se encontram: a trajetória dos últimos Romanov no trono russo sob o comando de Nicolau e Alexandra no fim do século XIX; a ascensão de Rasputin como uma figura controversa e influente na sociedade e na política; e o aparecimento de uma jovem que afirma ser Anastásia, a única sobrevivente do massacre de sua família em 1918.

Muito mais do que ser uma série de surpresas e reviravoltas, trata-se de uma leitura do passado histórico feita pelos realizadores acerca dos sentidos dados à queda do czarismo na Rússia. Nesse sentido, os relatos dos pesquisadores sustentam a  contextualização e explicação histórica do período, porém revelam problemas de abordagem para um cenário complexo e formado por diferentes variáveis. O foco majoritário dos episódios está nos Romanov, mostrando a crise do país pelo olhar dos últimos monarcas e humanizando aqueles personagens através de situações de medo e vulnerabilidade, mas também evidenciando deficiências narrativas: a instabilidade apenas é vista na cúpula do poder, sendo pouco retratada a crise socioeconômica das camadas populares no tempo da monarquia e intensificada pelos gastos militares (apenas com algumas poucas imagens de arquivos); e os opositores ao czarismo são descritos somente como um conjunto de forças unidimensionais, dotadas de brutalidade e autoritarismo e carentes de projetos políticos.

Além das insuficiências no conteúdo, as inserções das falas dos pesquisadores podem ser criticadas dentro dos aspectos técnicos da narrativa. Os profissionais são identificados pelos nomes, universidades e obras escritas, mas não por suas áreas de atuação (historiadores ou outras áreas de pesquisa?); as transições entre as dramatizações e os testemunhos não são fluidas, muitas vezes, tornando intrusiva a narração dos especialistas; os relatos, ocasionalmente, apenas ilustram o que já aparece na imagem, sendo, portanto, dispensável, ou especulam exageradamente sobre o temperamento dos indivíduos, algo difícil para ser pesquisado e mensurado. Quando as atenções se concentram sobre a exposição dos fatos históricos, os pesquisadores mostram seu valor como explicadores das características da monarquia, dos bastidores do poder e do afastamento da família imperial em relação à sociedade, ajudados pelas imagens e vídeos de época colocadas em sequência.    

O discurso sobre o passado também é feito pelas dramatizações dos atores, recurso interessante para tornar o público mais próximo dos eventos apresentados e explicados historicamente. A própria divisão dos seis episódios em temas bem delimitados oferece outra ancoragem a quem desconhece a realidade em questão da Rússia, perpassando pela coroação de Nicolau, pela necessidade de um herdeiro homem, pela influência política de Rasputin na corte, pelas consequências da Primeira Guerra, pela revolução de 1917 e pelo violento desfecho dos Romanov. Nos momentos dramatizados, a série volta a acertar na exposição do caráter religioso da monarquia czarista, no atraso político do país em comparação com a Europa, nas disputas políticas ao redor do imperador e na distância entre os aristocratas e as pessoas comuns, porém negligencia as condições sociais da população e as propostas políticas dentro da revolução (aspectos importantes para a compreensão da queda dos czares).

Existe um bom nível de fidelidade histórica na abordagem das tramas que preenchem o arco dramático central, como a aparição de mulheres que alegavam ser Anastásia enquanto seus restos mortais ainda não tinham sido encontrados e toda a controvérsia em torno de Rasputin, um padre curandeiro e místico envolvido com sexo e drogas que causou extrema polêmica ao influenciar os rumos da monarquia. Se por um lado, as passagens ficcionais têm o seu valor quando são dramaticamente bem construídas para transmitir um senso de perigo ou conspiração (todo o arco de Rasputin dentro da corte, por exemplo), as atuações deixam a desejar ou chamam pouco a atenção, como se percebe no overacting de Ben Cartwright e nas performances razoáveis de Robert Jack e Susanna Herbert.

A dramatização dos eventos reais ainda traz consigo resultados inconstantes do ponto de vista estético. Nos primeiros episódios, há uma sensação de programa televisivo saído de um especial do History Channel na mise en scène e na fotografia, que é atenuada com o avanço dos capítulos. Em seguida, o novo problema que afeta o visual da série é tom excessivamente melodramático de algumas sequências, como são muitas envolvendo Rasputin. O que, entretanto, se sustenta como ponto positivo é a reconstrução de época através dos figurinos e das locações que evocam o aspecto aristocrático e majestoso de uma família do século XIX no século XX. 

A insistência da narrativa ficcional e dos depoimentos de pesquisadores de recontar a decadência do czarismo prioritariamente pela perspectiva dos Romanov leva “Os últimos czares” a trabalhar muito superficialmente as transformações ocorridas na Rússia. Exemplo disso é a repetição constante dos problemas do governo bolchevique e do autoritarismo do grupo, sem menções a outros traços do novo governo. Mas, acima de tudo, a série constrói um discurso sobre o passado a partir das elites, a partir da História vista por cima – uma abordagem simplificadora que não cabe mais na atualidade.