“PALESTINA 36” – Os fatos falam por si [49 MICSP]
Quando um filme se baseia em fatos, em especial fatos históricos gritantes, algumas vezes a produção é concebida com base na premissa de que o grito fala mais do que a construção fílmica. Certamente existem eventos que merecem ser expostos, seja para dar-lhes ampla publicidade, seja para fazer com que as pessoas deles se lembrem, porém a maneira como eles são expostos é fundamental para esses fins e, sobretudo, para a qualidade do filme. É por isso que PALESTINA 36 deixa a desejar, a despeito de sua importância indiscutível.
O ano é 1936, quando as aldeias palestinas resistem à colonização britânica, que se torna cada vez (ainda) mais injusta à medida que os judeus passam a habitar a terra que originalmente era do povo palestino. Diante disso, o conflito armado e a consequente perda de vidas parecem inevitáveis.

O roteiro de Annemarie Jacir (que também dirige o longa) acerta ao calcular bem o espaço de cada um dos envolvidos. Com um viés pró-Palestina, os árabes são colocados como vítimas não propriamente da chegada dos judeus, mas da maneira como os britânicos operaram a colonização e mediaram essa chegada. Com isso, o espaço dos judeus é praticamente simbólico e os britânicos são vilanizados, ainda que – também acertadamente – sem maniqueísmo (Thomas, personagem de Billy Howle, é a representação da empatia e do senso de humanidade desse lado da História). Além disso, exceto por Thomas, os britânicos são irrelevantes em termos de desenvolvimento de personagem, a despeito de um grande nome no elenco, Jeremy Irons.
O foco de Jacir está nas personagens palestinas, com destaque para dois núcleos conectados. O primeiro é protagonizado por Yusuf (Karim Daoud Anaya), um jovem fascinado pela grande Jerusalém e que tende a uma visão pacifista, mas que é levado a mudar de postura ao perceber que os métodos diplomáticos não funcionam. Há um subplot envolvendo Rabab (Yafa Bakri) e a filha Afra (Wardi Eilabouni) que merecia maior desenvolvimento, de modo que a mera sugestão de um envolvimento afetivo (no sentido de uma reconstrução familiar), a partir de cenas esparsas (a água que ele dá para elas, o carinho pela menina e um diálogo envolvendo figurantes), torna essa interação pouco significativa enquanto tal.
O segundo núcleo é protagonizado por Khaloud (Yasmine Al Massri), certamente a personagem mais interessante. Trata-se de uma jornalista que, por ser mulher, assina como um homem para ter seus textos publicados, com a ajuda de seu marido, Amir (Dhafer L’Abidine). Khaloud destoa das demais mulheres em virtude de seu visual (o cigarro na boca, a ausência do hijab, o figurino ocidentalizado), seu grau de instrução e, principalmente, de sua postura, traduzida por pensamentos que não teme declarar (inclusive enfrentando Amir quando dele discorda, algo que diverge do papel feminino tradicional na cultura árabe), falas que denotam a não-submissão (como ao responder sobre onde aprendeu a falar inglês) e comportamentos independentes (como ao se encontrar em um local público com Thomas).
É importante que o filme pontue tanto o cinismo quanto a agressividade britânica naquele cenário histórico: aquele, por exemplo, no discurso de que os três povos (britânico, palestino e judeu) criariam juntos uma terra santa “unida e pacificada”, ou na transmissão de rádio mencionando a “generosidade árabe”; esta, em manifestações mais tênues de hostilidade (quando soldados requerem documentos) e na brutalidade de tratamento. Um problema inicial surge quando o filme ganha um ar hollywoodiano no tratamento de um de seus vilões, o Capitão Wingate (Robert Aramayo). Insatisfeito em construí-lo, no roteiro, como a representação de todo o mal, Jacir atribui-lhe uma atmosfera sombria digno do clichê do militar truculento, como ao filmá-lo de costas se deslocando para o próximo ato diabólico e ao colocar uma música que inspira a sensação maléfica para o acompanhar. Não há espaço para sutileza aqui.
Como se não bastasse, outras características da produção a tornam aquém da História. A divisão em capítulos é disforme e sem unidade, completamente distinta da aliança árabe, sendo verdadeiramente tocante ver como alguns atos relativamente simples (levar comida, esconder uma arma) ganham proporção gigantesca e como pessoas que, em outras circunstâncias, estariam em lados opostos (árabes muçulmanos e árabes cristãos, os pacifistas e os combativos), conseguem se unir por um fim comum. Algumas cenas parecem preciosidades (a que o pai ensina para o filho que resistência é melhor do que força para vencer, a que a avó de Afra fala para a menina sobre o real significado da terra) que seriam reforçadas pelas imagens de arquivo, mas a narrativa demonstra dificuldade em destacá-las e as ofusca com cenas que parecem saídas de um filme B de Hollywood (a resposta da Khaloud ao capitão é o melhor exemplo, pois o mesmo conteúdo do diálogo poderia ser desenvolvido sem recorrer a uma piada em formato clichê). Além disso, “Palestina 36” tem um grave problema de ritmo, o que denota sua montagem de má qualidade. Nesse sentido, podem-se citar a mudança de visão (e comportamento) de Khalid (Saleh Bakri) depois de apenas uma única cena, o corte abrupto da cena em que a terra é queimada e o drama de Yusuf envolvendo o pai e o irmão (a tristeza concernente ao primeiro não leva tempo suficiente para ser sentida, reduzindo o seu impacto). Parece que o filme acredita que os fatos falam por si, prescindindo de uma efetiva construção para envolver o espectador. Sem dúvida, os fatos são eloquentes e comovem qualquer um com senso de humanidade e justiça. Um bom livro de História, contudo, chegaria ao mesmo resultado.
* Filme assistido durante a cobertura da 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).


Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.

