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“PRIMAVERA EM CASABLANCA” [FVCF/2018] – Desejos e seus obstáculos

Pelo nome, pode parecer que PRIMAVERA EM CASABLANCA é um romance ou um filme leve. Porém, o filme não poderia ser diferente: a obra é densa, um pouco cansativa, prolixa e talvez entediante (a depender do espectador). Isso não significa que o filme é ruim, mas que pode encontrar dificuldade para dialogar com o público.

Essas características são consequências de uma escolha narratológica: o roteiro do longa é formado a partir de um mosaico de narrativas com alguma conexão extratemática. Mais especificamente, Abdellah, Salima, Hakim, Joe e Ines são as personagens principais de um enredo plural cujo mote é a dificuldade de encontrar a satisfação pessoal. Antes de o filme propriamente começar, aparece o seguinte provérbio berbere: “feliz é aquele que pode agir de acordo com seus desejos”. Bem mais adiante, uma sábia personagem diz: “às vezes, não escolhemos as nossas batalhas”. São temas universais regados nas peculiaridades do mundo árabe.

É aí que reside o primeiro problema do longa. Apesar de alguns momentos brilhantes, para quem é alheio a essa cultura, ele pode se tornar mais distante do que realmente é – inclusive por alguns questionamentos do tipo: “se a mulher pode usar roupa curta para exibir o corpo, por que não pode fumar?”. Ou seja, o roteiro de Nabil Ayouch e Maryam Touzani é muito melhor absorvido por quem já está inserido nesse meio. Além disso, como era previsível a partir da proposta de antologia, há uma manifesta irregularidade narrativa. Alguns arcos são bem claros, como o de Abdellah, enquanto outros, como o de Hakim, demoram para tomar contornos concretos. Como resultado, fica difícil manter o foco em cada uma delas.

O diretor (e corroteirista) Nabil Ayouch, contudo, não parece ter se preocupado com isso, criando um Frankstein estilístico – aspecto que talvez não salte aos olhos do espectador médio. A ausência de padrão é verificável, por exemplo, no uso de narração voice over apenas com duas personagens, enquanto que, com as demais, a demonstração é o caminho adotado. Nesse sentido, se a montagem tivesse sido operada de maneira mais formulaica, no estilo do maravilhoso “Relatos selvagens”, provavelmente esses problemas seriam dissolvidos. A aleatoriedade da montagem, em síntese, não é benéfica. Entretanto, a montagem paralela de sequências de violência (explícita e assustadoramente descontrolada) e agressões é bem eficaz. Ainda quanto à ausência de padrão, a qualidade da fotografia na narrativa de Abdellah (explorando tons pastéis ou cores escuras para exaltar a aridez do local), comparativamente, reforça esse desnível.

Ayouch aproveita o local onde se passa a maior parte da história para fazer referências ao clássico “Casablanca” – muitas delas completamente explícitas, como um pôster e a presença da canção “As time goes by”. A trilha musical, por sinal, é bem usada: sem tomar para si o protagonismo formal, surge nos momentos ideais. A câmera na mão é um recurso mal utilizado, ao passo que a filmagem mais estática é a que gera os melhores efeitos, como na cena em que Salima se submete a um procedimento ou quando ela aparece em close tirando a maquiagem – certamente, o trabalho da atriz/corroteirista Maryam Touzani ajuda muito para transmitir a intensa emoção do momento, sem deixar de lado o papel da trilha musical.

Neste e no próximo parágrafo podem haver spoilers (leves, por assim dizer) do filme, já que são exploradas as narrativas individuais, necessidade mesmo em se tratando de um roteiro pulverizado como é o de “Primavera em Casablanca”. Algumas personagens são a representação do desejo sexual latente, como é o caso de Joe (Arieh Worthalter) e Ines (Dounia Binebine). No primeiro caso, há uma castração externa que motiva uma busca pela compensação; no segundo, é sugerida uma orientação sexual socialmente reprimida, cujo efeito é o oposto do que aquela sociedade deseja – a cena em que Ines se prepara para um brevíssimo ritual, mudando das roupas curtíssimas e informais para um vestuário em que cobre quase o corpo inteiro, é bastante significativa. Aliás, no figurino, destacam-se a versátil Ines, a sensual Salima e o descontraído Hakim: a primeira varia muito; a segunda é minimalista nesse quesito; o terceiro usa regata e couro, inspirado, certamente, em seu ídolo.

Os outros três arcos dramáticos são mais robustos. Amine Ennaji interpreta bem Abdellah, um professor empolgado que ama o que faz, mas que se vê frustrado por imposições que fogem do seu controle. É a partir dele que as tramas se interconectam. A Salima vivida por Maryam Touzani é fascinante mais pela atriz do que pelo papel: todos os erros de Touzani como roteirista foram compensados pela sua atuação. Com ela, cenas ontologicamente simbólicas – como a do enterro de um passarinho e a do vestido curto – ganham olhar axiológico mais intenso – nos exemplos dados, o enterro é um verdadeiro culto, enquanto o vestido ratifica a revolução que ela propõe. Abdelilah Rachid é ótimo como Hakim, um jovem sonhador fã de Freddie Mercury. Ao mesmo tempo em que Rachid capta a aura nefelibata de Hakim, ele não deixa de lado sua personalidade batalhadora. A cena em que ele canta “We are the championsa capella é sensacional ao reunir poeticamente cada personagem refletindo sobre seus respectivos conflitos.

Primavera em Casablanca” não parece querer plateias enormes no mundo todo, todavia tem potencial para cativar espectadores de perfis distintos cujo traço comum é a vontade de pensar sobre desejos que encontram obstáculos. Algo que deve encontrar identificação em muitos.

Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês 2018.