Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“PROJETO FLÓRIDA” – Encanto e Realidade Às Sombras da Disney

Alguns filmes têm o poder de causar empatia por personagens de moral duvidosa. Através do uso de recursos cinematográficos, o diretor brinca com o espectador e testa seus limites: até onde torcer pelo sucesso de quem parece ser o vilão da história? “Projeto Flórida” é um desses filmes, mas que não navega em águas rasas. O diretor Sean Baker (“Tangerine”) entrega uma obra sensível e reflexiva a respeito da condição humana, através de um bom roteiro e grandes atuações.

Moonee (Brooklyn Prince) é uma criança de seis anos que mora num hotel barato próximo ao Walt Disney World junto com sua mãe, Halley (BriaVinaite). Durante um verão, Moonee brinca com seus amigos rebeldes, aprontando sem se importar com as consequências, enquanto sua mãe luta para ter onde dormir por mais uma noite.

Não há dúvidas que Brooklyn Prince é a estrela desse longa, e não é para menos. Ela se mostrou uma atriz sólida durante todo o filme, sendo poucas cenas onde ela não está na tela. Uma criança rebelde que pode, dentre muitas explicações, ter tido uma má educação ou mesmo ter sido influenciada pelo lugar onde vive. O fato é que Moonee encarna uma complexidade diferente, que abraça um entendimento puro do mundo, ainda que por olhos distorcidos devido à sua condição socioeconômica. Baker fez um ótimo trabalho nesse aspecto, ao gastar muito tempo mostrando Moonee tomando sorvete, caminhando na chuva ou simplesmente com alguns brinquedos e seus amigos. Por mais diferente que uma educação familiar como a dela possa ser, ela ainda é uma criança e enxerga o mundo assim.

“Sabe porque essa é minha árvore favorita? Porque ela caiu e continua crescendo” Moonee

O trabalho de câmeras é muito bom, ora priorizando uma câmera estática e aberta para sugerir o tamanho do mundo e da complexidade externa comparada às crianças, ora utilizando trackingshots na altura delas, diminuindo o escopo de todo o seu universo. Já a direção de fotografia de Alexis Zabe se revelou muito interessante. Experiente, mas tendo trabalhado a maior parte de sua carreira em curtas, Alexis trabalhou as cores e sua significação dentro do hotel e fora dele. Sob a perspectiva de Moonee, o roxo se torna o ambiente aconchegante, onde há segurança, enquanto o laranja (da loja de frutas) e o azul indicam todo o mundo ao redor do seu hotel e sua imensidão. A vivacidade das cores, que saltam à tela e realçam até características climáticas da Flórida, é o elemento que não só coloca o espectador no ponto de vista das crianças, mas também o transporta para suas próprias memórias afetivas da infância através do lúdico.

Há um excesso de repetições, ou seja, Baker quer transmitir a sensação de rotina ou sucessões. Os helicópteros, os problemas de Bobby (Willem Dafoe), a rotina no hotel… O “um dia após o outro” é agonizante para uma Halley sem dinheiro e com uma filha para criar, mas para as crianças é motivo de alegria. O diretor traça esse contraste a partir das continuidades da trama, enfatizando a rotina como o que separa de fato a mentalidade dos adultos e das crianças.

Dafoe entrega uma atuação excelente: discreta, mas muito convincente. São os detalhes em sua expressão e suas atitudes para com Halley que ao longo do filme revelam Bobby como um personagem complexo. A maneira como ele trata as crianças se mostra inicialmente de alguém controlador ou, como Moonee o chama, um “estraga prazer”. Porém, sutil e progressivamente se percebe um personagem que não é tão simples. Méritos do roteiro de Baker e coescrito por Chris Bergoch, seu também parceiro de “Tangerine”, mas também de uma precisa atuação de Dafoe, que eleva o filme em muitos momentos.

O público pode se questionar diversas vezes durante o longa a distorção do caráter de Halley, o que claramente reflete na educação de Moonee. O papel da maternidade nos padrões convencionais é totalmente descartado, dando lugar a um ambiente de drogas e palavrões (e progressivamente a história descama mais condutas duvidosas da mãe). Talvez seria o caso de “o homem é bom por natureza, mas a sociedade o corrompe”, de Jean-Jacques Rousseau? Devido ao uso dos recursos cinematográficos de Baker, pode-se dizer que existe uma força externa que, de certa forma, subjuga os personagens já marginalizados. Existe um quê de “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo, nesse longa. As relações sociais e econômicas e principalmente a pobreza são trabalhadas de modo a não definir contornos padrões para o resto da sociedade, seguindo uma espécie de lógica própria. A princípio, julgar Halley por suas atitudes pode parecer correto, todavia o aprofundamento em sua relação de amor verdadeiro para com Moonee fisga o espectador que se afogava nas convicções padronizadas sobre uma relação tradicional de mãe e filha.

O desfecho é excelente, pois trabalha com consequências e até mesmo justiça. A brilhante atuação de Brooklyn converge para uma sequência final quase mágica, onde entra a pouco presente trilha sonora. O uso de jumpcuts criam a sensação de que, pela primeira vez, o tempo é importante para Moonee. Emocionante, muitas vezes duro e com os dois pés fincados na realidade, “Projeto Flórida” se sobressai por mostrar problemas comuns e  por ser capaz de fazer o espectador se importar na integralidade com cada detalhe da trama. Uma obra reflexiva, bela e, sobretudo, real.