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“QUERIDO MENINO” – Montagem, trilha, fotografia e elenco

A droga não discrimina o seu usuário. Entrando na sua teia, a dificuldade de sair é imensurável. Qualquer tipo de pessoa está sujeita a esse mal, capaz de destruir não apenas o dependente, mas todo o seu círculo socioafetivo. QUERIDO MENINO é um drama mais ortodoxo que “Réquiem para um sonho” e “Trainspotting – sem limites”, mas nem por isso menos impactante. Os três talvez sejam os melhores filmes que retratam, cada um à sua maneira, os efeitos nocivos da narcodependência nas relações intra e interpessoais.

O narcodependente de “Querido menino” é Nicolas “Nic” Sheff, um jovem prestes a entrar na faculdade, mas que tem abalado sua família em razão do vício em metanfetaminas (dentre outras substâncias). Seu pai, David, é um jornalista que tenta, com o suporte de Karen, sua segunda esposa, tirar Nic desse mundo. Enquanto David estuda as drogas e tenta entender por que o filho se tornou viciado, Nic passa por um frenético vaivém do doloroso ciclo da dependência.

Cartaz de “Querido menino

Esse é apenas o terceiro trabalho de direção do jovem belga Felix Van Groeningen. Contudo, já é possível perceber da sua filmografia um esmero especial em quatro pilares: montagem, trilha musical, fotografia e direção de elenco.

Assim como em “Alabama Monroe” (mas diferentemente de “Belgica”), a montagem aqui não é integralmente cronológica. A repetição da parceria com o montador Nico Leunen não poderia ter melhor resultado: para não se tornar enfadonha, em razão da trama intensamente dramática, a narrativa é atenuada por cenas de alívio em forma de flashbacks, que, de fato, reduzem a carga densa do plot. O resultado é uma harmonia elogiável. Assim, em meio à tormenta, David revê mentalmente os bons momentos que viveu ao lado do filho, o que, por via de consequência, também agrega à construção das personagens.

É através dos flashbacks que se descobre que David sempre foi um pai que preferiu a posição de amigo do que a de autoridade, um companheiro que surfava junto do pré-adolescente Nic e que tinha a coragem de reconhecer perante o filho ter experimentado drogas quando mais jovem – isso apenas como exemplo. Tendo ficado com a guarda do de Nic, David nunca quis um muro entre eles, porém recorda que o comportamento daquele passou a mudar na fase mais próxima à adulta, quando Nic se tornou um “vampiro” intelectual que não saía do quarto.

Além disso, Van Groeningen sabe como poucos diversificar o uso da sua esplendorosa e variada trilha musical: como música de fundo, “Svefn-g-englar” (da islandesa Sigur Rós), que dá background a uma inesperada recaída de Nic; com função descritiva, “Sunrise sunset” (jazz na voz de Perry Como), que trata da surpreendente velocidade com que as crianças crescem; como música de contraste, “Territorial pissings” (Nirvana), que estabelece uma dialética entre o Nic adolescente divertindo-se com David e o David desesperado procurando pelo filho (aliás, essa sequência é brilhante e a montagem aqui é exemplar); e “Of once and future kings” (Pavlov’s Dog) funciona como tema de Karen. Também merece menção “Treasure”, de Sampha, um soul lindamente criativo composto especialmente para o filme.

A fotografia também é muito boa. A colaboração reiterada de Ruben Impens é salutar ao brindar o público com belas paisagens. No mesmo sentido, alguns elementos imagéticos compõem uma mise en scène bem elaborada – por exemplo, o livro “Belos e malditos” (“The beautiful and damned”), de F. Scott Fitzgerald, que tem uma personagem etilista; e o quadro pintado por Karen, que transmite a ideia de vigilância.

No caso de “Querido menino”, provavelmente a direção de atores é o que há de melhor. Steve Carell compõe David com delicadeza e serenidade, uma quase introspecção que não ofusca o conforto que ele está sempre disposto a oferecer ao filho. A cena em que ele declara o amor ao pequeno Nic é de uma sensibilidade realmente tocante. Mesmo à sua sombra, Maura Tierney vai bem ao retirar Karen do lugar comum da madrasta alheia ao conflito.

Depois do magnífico “Me chame pelo seu nome”, Timothée Chalamet apresenta outro trabalho fenomenal. Por exemplo, a cena em que Nic assume para o pai que já experimentou “tudo” é síntese da sua vergonha mais aguda, muito mais que a tristeza que os olhos lacrimejantes induzem. Ele convence nas cenas em que ele fica sob efeito de entorpecentes, porém é nos momentos de drama interno que o ator se mostra fabuloso – ou nos de desespero raivoso (como a cena em que pede dinheiro), pois não recai em overacting. Nic não é uma personagem multidimensional, internalizando a vergonha por decepcionar a família e exteriorizando uma insatisfação filosófica com a “realidade estúpida”, que é o “mundo real” que ele diz expressamente que não quer. Quando ele cita Bukowski, assume a gigantesca insatisfação do escritor: paz e felicidade, nas palavras deste, representam os fracos. Sua insociabilidade, todavia, não exclui episódios encantadores ao lado dos irmãos pequenos. Expor o quão Nic é multifacetado representa uma tarefa desafiadora que Chalamet executa admiravelmente.

Carell e Chalamet conduzem diálogos extremamente dolorosos do ponto de vista dramático. De um lado, um pai ansiando por respostas e, principalmente, uma forma de ajudar; de outro, um jovem vítima de um vilão da humanidade, com a missão hercúlea de salvar-se de si mesmo. Unido a eles, um cineasta que dirige magistralmente uma obra cuja pujança está na realidade humana.