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“RASTROS DE UM SEQUESTRO” – A multiplicação de plot twists

Existem filmes que são preparados para revelar um plot twist, uma grande reviravolta no andamento da narrativa. E existem filmes como RASTROS DE UM SEQUESTRO, que empilham plot twists numa velocidade acelerada e alteram a atmosfera continuamente. Essa escolha narrativa acaba colocando um preço duro a pagar: ofuscar suas qualidades em nome de uma maior complexidade narrativa.

Inicialmente, a história acompanha a mudança de casa da família de Jin-seok, um jovem de saúde instável que faz uso contínuo de medicamentos. Quando seu irmão Yoo-seok é sequestrado e devolvido vários dias depois completamente diferente, Jin-seok suspeita que aquele homem não seria seu irmão. A sinopse é somente um pontapé inicial, já que o roteiro rapidamente se desdobra em diversas direções (algumas delas originais, outras pouco críveis). Nem sempre as surpresas da trama resistem a um olhar atento que perceba as incongruências e as conveniências do roteiro, dedicadas a enganar espectadores e personagens.

Ainda que algumas reviravoltas provoquem dúvidas sobre suas possibilidades, elas são bem construídas narrativamente pelo diretor Hang-jun Zhang. A partir da interação com o design de produção, o cineasta lança inúmeros exemplares da Lei de Tchekhov entre os objetos da residência ou os diálogos aparentemente prosaicos: um calendário, um remédio, uma conversa com um dos funcionários da empresa de mudanças, entre outros, são inseridos discretamente e provam sua função dramática quando são justificados no terceiro ato. Apenas ao fim da projeção, o público pode se entreter montando as peças de um quebra cabeça que não deixa furos dentro da estrutura narrativa (o mesmo não se aplica, entretanto, aos impactos dos plot twists na vida dos personagens).

Enquanto as surpresas ainda não aconteceram no filme, o cineasta tenta construir uma atmosfera de mistério em torno do sequestro de Yoo-seok e de seu retorno inesperado. Porém, o suspense é criado através de uma série de artifícios que não combinam com a abordagem da obra ou que já são clichês batidos: jump scares facilmente antecipados (ressalva para o único que realmente funciona, apesar de não fazer sentido dentro da narrativa) ou provenientes de pesadelos (recurso já usado à exaustão no cinema), deus ex machina para resolver impasses no roteiro de modo rápido e pobre (especialmente, em sequências de perseguição que o diretor não sabe como encerrar) e uma montagem paralela para as sequências de perseguição que falham na construção da tensão por não conseguir dar uma ameaça concreta ao protagonista. A atenção do espectador diante do mistério se explica muito mais pelas viradas do roteiro do que pelo trabalho de Hang-jun Zhang.

Se a maior parte das viradas na trama se destinam à ampliação do suspense, as duas últimas transformam a história em um drama trágico. E isso não é nenhum demérito do filme, muito pelo contrário. A alteração do gênero é orgânica e conduzida com segurança pelo diretor, de maneira mais inspirada do que durante o mistério inicial: a paleta de cores assume tons ainda mais melancólicos (diferentemente dos ambientes escuros e chuvosos da primeira parte); a trilha sonora deixa de lado os acordes graves de ritmo misterioso e aposta numa condução angustiada como é a vida dos personagens; e a direção acerta em fazer o público mergulhar no declínio de indivíduos oprimidos por um cenário adverso e desesperador. A sensação de que a alma da obra estava em sua porção dramática vem da força de uma narrativa que passa a se preocupar com o peso das escolhas erradas numa situação limite – é uma pena, portanto, perceber como o pouco tempo de tela dessa passagem impede que o filme salte de qualidade.

E o material disponível apresentava um valor inegável, como se pode apreender pelas duas atuações principais do elenco. O protagonista Jin-seok, interpretado por Kang Ha-neul, atravessa distintas camadas entre a idolatria pelo irmão, o desespero pós-sequestro, a incompreensão e a paranoia diante dos estranhos eventos ao seu redor e os dramas de sua vida gradualmente desenterrados. Já o principal coadjuvante Yoo-seok, vivido por Kim Mu-yeol, consegue esconder muito bem os traços secretos de sua personalidade e de seus objetivos, somente para revelar de modo gradual quem é e o que isso significa (as transformações pelas quais ele passa também se enquadram perfeitamente nas reviravoltas da trama). As duas interpretações chave do filme evocam o tom geral da narrativa de formação de aparências (conscientemente ou não) e de sua consequente subversão.

Quando enfim “Rastros de um sequestro” declara a que veio, a força de um roteiro bem delineado ganha o primeiro plano através da pulsação energizante de um drama extremamente humano e passional. Entretanto, muito tempo é desperdiçado com um suspense frágil, uma sucessão descontrolada de plot twits e intervenções pouco produtivas da direção (algo que se vê, inclusive, na última sequência, que compromete o impacto do desfecho). O que fica é a embalagem inferior ao conteúdo por ela envolvida.