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“RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS” – O mito de Orfeu

Filho de Apolo, Orfeu conseguiu casar-se com sua amada Eurídice, perdendo-a em duas oportunidades. Na primeira, em razão de uma picada de cobra que a matou enquanto ela fugia de Aristeu, que tinha por ela uma obsessão e a seguia. Indignado com o falecimento da esposa, Orfeu vence os desafios do mundo inferior e pede a Hades que devolva sua amada à vida. Perséfone, esposa de Hades, pede para que o desejo seja atendido. O deus do mundo subterrâneo concede o pedido, impondo uma simples condição: Orfeu só poderia olhar para Eurídice (que o seguiria durante o caminho) quando ela estivesse novamente na luz do sol – caso contrário, ela não retornaria à vida. Tocando músicas para celebrar, no final da jornada, o herói olha para trás para verificar se a amada o está seguindo. Como ainda não era o fim do túnel, Eurídice dá um grito final e volta ao reino de Hades. Foi o episódio da mitologia grega que inspirou o filme RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS.

Na trama, a pintora Marianne é contratada por uma condessa para pintar um retrato de sua filha, Héloïse, retrato que seria entregue a um milanês rico que tem interesse em se casar com ela. A dificuldade do trabalho reside no fato de que Héloïse não quer esse casamento, razão pela qual se nega a posar para qualquer pintor. Assim, a tarefa de Marianne é retratá-la sem que ela saiba, fingindo ser apenas uma dama de companhia. A aproximação das duas faz emergir um amor proibido.

(© Supo Mungam Films / Divulgação)

Escrito e dirigido por Céline Sciamma, o texto tem uma premissa razoavelmente criativa e instigante para tratar de dois assuntos que merecem atenção: a opressão à mulher e a proibição da homossexualidade – lembrando tratar-se da França do século XVIII. Sophie (Luàna Bajrami), a criada da família, reproduz um dos desdobramentos do primeiro tema, na medida em que apenas a sororidade das outras duas (Marianne e Héloïse) é que lhe permite realizar seus planos. Não há um julgamento moral quanto ao seus atos, mas simples apoio e companheirismo.

Héloïse é o exemplo máximo do que a mulher não tinha, a liberdade. O plot a coloca no que para ela é um inferno, já que ela afirma preferir um convento a se casar com um homem que sequer conhece. Marianne não entende a sua situação porque tem a opção de se casar ou manter-se solteira; o que as une, nesse sentido, não é exatamente a condição individual, mas a emoção dividida. Em determinado momento, ela questiona à pintora: “estar livre é estar sozinha?”. O que ela quer não é necessariamente a solidão, mas a escolha.

Adèle Haenel tem no longa um de seus melhores trabalhos de atuação, conseguindo transmitir em Héloïse, através da expressão vazia, a insatisfação quanto à vida que leva, de modo que um sorriso, quando (e se) aparece, sempre soa forçado. Do inconformismo blasé surgem novos desejos, o que se traduz nas cores do figurino, que sai do gélido azul para um alegre verde. Aliás, o vestido verde é compartilhado com Marianne, pois o que elas querem é justamente compartilhar momentos. Não é à toa que a pintora está quase sempre com um vestido de tom vermelho alaranjado, já que sua vida é em si mesma incandescente (em especial do ponto de vista comparativo).

Marianne é o fio condutor da trama, de modo que Noémie Merlant não compromete na atuação, contudo é claramente ofuscada por Haenel, que se mostra fenomenal no epílogo, quando embalada ao som de Vivaldi. Aliás, a trilha musical, quantitativamente modesta (apenas três músicas intradiegéticas), é qualitativamente esplendorosa, sobretudo na fascinante “La jeune fille en feu”, de Para One e Arthur Simonini.

O que eleva a participação de Marianne não é o olhar atento da atriz, mas o modo como a câmera coloca o espectador na sua posição, através da ocularização subjetiva. Através dessa ferramenta, o público enxerga o mesmo que ela, seja uma pintura em desenvolvimento, seja uma pose interessante de Héloïse (como quando há um plano-detalhe em suas mãos). Percebe-se uma direção consistente de Sciamma, que não espetaculariza o amor entre as duas (embora elas apareçam nuas, são bem expostos os pelos nas axilas e a saliva trocada no beijo), mas permite à plateia vislumbrar o quão idílico é esse amor. No primeiro beijo, por exemplo, o véu que cobre parcela dos seus rostos precisa ser retirado como se as amarras das proibições estivessem sendo desmanteladas. Quando Héloïse pega fogo, o sentido é literal e simbólico.

No final, é de uma forma encantadoramente poética que Marianne é enquadrada como Orfeu, não apenas por uma citação expressa, mas ao metaforicamente querer retirar Héloïse de um inferno (sem desconsiderar a similitude estrutural das trajetórias quanto ao olhar a amada). É bonito, porém “Retrato de uma jovem em chamas” tem um grave problema de ritmo, tornando-se vagaroso em excesso no desenvolvimento (quiçá entediante para parcela do público) e desproporcionalmente pujante no encerramento.