“SEM CHÃO” – Quando a câmera se torna a última defesa
Diante de um mundo onde a narrativa oficial frequentemente apaga vozes dissidentes, SEM CHÃO surge como um testemunho urgente da luta pela sobrevivência de uma comunidade palestina sob ocupação israelense. A história não se limita a relatar os eventos visíveis da opressão, mas se aprofunda nas cicatrizes invisíveis deixadas pela constante ameaça de deslocamento e apagamento cultural. Ao acompanhar as vidas daqueles que enfrentam a destruição sistemática de suas raízes, o documentário expõe a brutalidade de um conflito que, para muitos, se tornou um cotidiano inescapável. Há uma força inerente na forma como os protagonistas encaram a adversidade, sustentando-se na memória coletiva e na resistência silenciosa que persiste apesar da violência imposta.
A obra acompanha Basel Adra, ativista palestino que desde a infância enfrenta a iminente expulsão de sua comunidade devido à ocupação israelense. Criado em meio à incerteza constante, ele aprendeu desde cedo que seu lar poderia ser destruído a qualquer momento, levando consigo não apenas estruturas físicas, mas também a história e a identidade de seu povo. Com uma câmera na mão, Basel documenta esse apagamento em tempo real, capturando demolições, despejos forçados e o impacto psicológico dessa violência cotidiana. No meio desse processo, ele cruza caminho com Yuval Abraham, um jornalista israelense que decide se juntar à sua causa, oferecendo sua plataforma e visibilidade para amplificar a denúncia.

O documentário, dirigido e protagonizado por Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Basel Adra, também destaca a câmera como ferramenta de luta. Para os palestinos retratados, filmar não é apenas um registro passivo dos eventos, mas um ato político essencial. Em um contexto em que a justiça é inatingível por meios institucionais, a gravação se torna uma arma contra o apagamento. Historicamente, a narrativa sobre o conflito entre Israel e Palestina tem sido dominada por potências internacionais e veículos midiáticos que frequentemente minimizam a experiência palestina. A ocupação israelense, consolidada ao longo de décadas por meio da expansão de assentamentos e políticas de deslocamento forçado, impõe um ciclo contínuo de opressão, onde a violência se manifesta tanto fisicamente quanto na tentativa de silenciar. Diante desse cenário, o próprio ato de documentar se transforma em uma forma de resistência, reafirmando a existência de um povo que se recusa a ser reduzido a estatísticas ou escombros. Cada imagem registrada é uma resposta à tentativa de apagamento, uma prova irrefutável da realidade vivida por milhares de palestinos que lutam para preservar sua identidade e sua terra.
A força do longa reside na maneira como captura as contradições internas de seus protagonistas. Ao longo do documentário, a relação entre Basel e Yuval se constrói sobre um equilíbrio instável entre a solidariedade e o abismo social e histórico que os separa. A intimidade compartilhada se mistura com o peso do conflito, criando momentos de exaustão, desesperança e tensão. O cansaço se acumula não apenas pelo que enfrentam externamente, mas pelo questionamento contínuo sobre os limites da amizade e do compromisso dentro de um sistema opressor. Yuval pode escolher ir embora; Basel, não.
Esse sentimento de desamparo é amplificado pela abordagem visual do filme, que recusa qualquer estetização da tragédia. A fotografia crua e o uso de câmeras de mão capturam uma urgência palpável, como se cada imagem fosse um ato de preservação histórica. A montagem acompanha esse ritmo, intercalando momentos de tensão com instantes de contemplação dolorosa, em que a paisagem devastada diz tanto quanto qualquer diálogo. A trilha sonora discreta permite que o peso dos silêncios e das palavras faladas preencham os espaços, reforçando a sensação de impotência, mas também de resiliência. Esse equilíbrio entre a brutalidade dos fatos e a sensibilidade do olhar faz com que cada cena ressoe com uma força difícil de ignorar.
“Sem chão” é um filme que incomoda, desafia e, acima de tudo, humaniza um conflito muitas vezes reduzido a abstrações políticas. Ele nos obriga a encarar a realidade nua e crua da ocupação, sem concessões ou filtros. Cada cena, cada olhar capturado, é um lembrete de que, por trás das manchetes e discursos geopolíticos, existem vidas que resistem a ser apagadas. Ao final, a mensagem é clara: resistir não é uma opção, é uma necessidade. E, quando a justiça é negada, a câmera se torna a última linha de defesa contra o esquecimento.

Um verdadeiro apaixonado pelo cinema, que encontrou nas palavras a maneira ideal de expressar as emoções e reflexões que cada filme desperta.