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“SOMBRA LUNAR” – Reinvenção constante

Ousadia e complexidade são as palavras de ordem do diretor Jim Mickle para filmar seu projeto original Netflix. Isso porque SOMBRA LUNAR, na aparência, parece ser uma história de investigação criminal, mas se reinventa constantemente alterando a perspectiva do filme, o gênero e as trajetórias dos personagens. Alternâncias e transformações que se articulam ao tema e à estética.

Cartaz de “Sombra lunar

O ponto inicial da trama é a Filadélfia de 1988. O policial Thomas Lockhart está empenhado em se tornar um detetive no mesmo patamar de seu cunhado Holt. Para tanto, ele segue os rastros de um misterioso serial killer que ataca a cada nove anos. Os crimes, contudo, desafiam qualquer explicação lógica, criando em Thomas uma obsessão que ameaça destruir seu casamento com Jean (grávida de uma menina), sua carreira e sua sanidade.       

Apoiando-se em uma narrativa cíclica, a produção rompe parte do seu estilo e reelabora sua abordagem a cada mudança de bloco narrativo. As rupturas mais sensíveis são a passagem de um gênero a outro à medida que a projeção se desenrola: inicia-se como um filme de ação de perseguição ao suspeito pelos assassinatos incomuns; depois, se torna um suspense de caráter fantástico, devido à ocorrência de eventos de difícil explicação científica; em seguida, assume um viés dramático, graças à exposição das consequências da obsessão de Thomas em sua própria vida e na relação com os demais personagens; e, por fim, abraça a ficção científica quando apresenta uma conclusão compatível com uma das convenções desse gênero. Essa sucessão de estilos ocorre organicamente, pois os fatos da investigação se desenvolvem coerentemente e as modificações na iluminação ambientam cada novo tom (cena noturnas para a ação, diurnas para o suspense e luz artificial para a ficção científica).

Mesmo tendo reinvenções em cada diferente momento cronológico, há alguns traços de continuidade e semelhanças que atravessam os ciclos da investigação dos assassinatos. As cenas violentas apresentam um grafismo destacado pelos enquadramentos de Jim Mickle, que registram detalhadamente os efeitos incomuns daqueles crimes, e passagens desagradáveis são filmadas com grande expressividade, como a cena transcorrida em uma cova aberta tendo o esqueleto de um cadáver e outra ocorrida dentro de um veículo carregando porcos. A progressão da trama também acontece através uma narrativa econômica que explica o estado do universo, dos personagens e as mudanças de ambos sem didatismo (os diferentes significados da cena de preparação de panquecas, as informações contidas em jornais na cena, as alterações no carro do protagonista e a cena em que uma tragédia é anunciada silenciosamente).

As constantes reformulações do filme são potencializadas pelas demonstrações evidentes da interferência visual do cineasta. Ele não se preocupa em construir um estilo transparente de direção que oculte suas manipulações da imagem, procurando deixar claro que as reinvenções também estão presentes no trabalho de Jim Mickle. Por exemplo, as duas cenas da preparação das panquecas são filmadas com a técnica split screen e com grande profundidade de campo para dividir o quadro e, assim, mostrar o que a significa a preparação desse alimento e o noticiário da TV; além disso, em dois clímax dramáticos, é inserida uma trilha sonora operística, sendo eles filmados em slow motion para ressaltar a força do momento de maneira inesperada.    

As recriações temáticas e estéticas também beneficiam o traço comum que percorre toda a obra: o jogo de gato e rato estabelecido pela perseguição dos policiais ao suspeito de ser o serial killer. A caçada é levada a diferentes níveis de sentido e dificuldade, pois se inicia simplesmente como uma investigação pela descoberta da identidade do criminoso e por sua captura, avança para o esforço de compreender a recorrência dos crimes e sua motivação e se estende para perceber a influência dos assassinatos na jornada pessoal dos personagens e na realidade de toda a sociedade – o deslocamento por distintos gêneros, inclusive, aumenta a ameaça do antagonista, destacando suas capacidades de luta e a dificuldade de prendê-lo em razão dos eventos exóticos que o cercam. Além do assassino, o protagonista também é beneficiado pelas variações em seu arco dramático, ganhando novas camadas: ao invés de ser apenas um policial com o dever se solucionar o mistério, ele se torna cada vez mais envolvido emocionalmente em acontecimentos que tenta entender e interferir por razões pessoais – essa jornada somente não se desenvolve plenamente por conta das dificuldades de Boyd Holbrook em convencer nas sequências dramáticas.  

 “Sombra lunar” tem o mérito de se transformar continuamente dentro de uma lógica narrativa e estética justificada. Em termos estilísticos, a ideia do ciclo ininterrupto é evidenciada pelas composições expressivas de Jim Mickle (por exemplo, o enquadramento de um túnel em formato circular no clímax do terceiro ato); já em termos temáticos, o roteiro assinado por Gregory Weidman e Geoff Tock é construído para mostrar como os indivíduos podem transformar sua própria trajetória, viajando pelo tempo e reinventando suas identidades e seus objetivos de vida. Uma proposta desafiadora bem executada pelas possibilidades criativas do cinema.