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“SPRINGSTEEN: SALVE-ME DO DESCONHECIDO” – Tão desconhecido que [49 MICSP]

Narrativamente tumultuado e extremamente mal-resolvido, SPRINGSTEEN: SALVE-ME DO DESCONHECIDO não faz jus à fama e ao sucesso de seu biografado, Bruce Springsteen. Por outro lado, o filme faz jus ao seu subtítulo: de fato, o protagonista precisa ser salvo de algo que é tão desconhecido que é abordado de maneira confusa e remanesce desconhecido após o término da sessão.

O álbum “Nebraska”, de 1982, foi um momento crucial na carreira de Bruce Springsteen, catapultando-o ao estrelato. O longa acompanha a concepção do álbum, em um momento em que o músico precisava lidar com o receio do sucesso iminente e traumas do passado mal resolvidos.

(© 20th Century Studios/Disney / Divulgação)

O roteiro de Scott Cooper (também diretor do longa), baseado no livro de Warren Zanes, tem um grave problema na construção dos conflitos do protagonista. De caráter interno, eles ganham aspecto interpessoal e externo pela maneira como Bruce os exterioriza, mas a sua origem (a interioridade) é nebulosa. Em outras palavras, por força de traumas do passado, o músico não consegue construir uma relação afetiva sólida – conflito interpessoal -, circunstância que dificulta o romance com Faye (Odessa Young), e faz com que conceba “Nebraska” a partir de parâmetros heterodoxos para a indústria fonográfica – conflito externo -, o que desagrada a pessoas como Al (David Krumholtz), demandando o apoio de Jon (Jeremy Strong) e Mike (Paul Walter Hauser). O problema é que a base de tudo isso é um conflito interno muito mal esclarecido, o que reverbera nos demais conflitos.

Sem olvidar da pobreza de alguns diálogos – falas como “é difícil perceber que as pessoas não são quem queremos que sejam”, na qual Faye se refere a uma personagem ainda mais irrelevante na trama do que ela mesma -, Cooper vai de clichês – como a sobreposição de ruídos de batimentos cardíacos em alucinações representando subjetividade mental – à pieguice – como a reação de Bruce à pergunta “o que o trouxe aqui?” – sem comedimento. A cena piegas mencionada, por exemplo, só não é pior porque a atuação de Jeremy Allen White no papel principal denota uma entrega digna de muitos elogios. O ator é parecido com o biografado em razão de uma semelhança física, o que é elevado graças a lentes de contato que trocam seus olhos azuis por castanhos (presume-se que são lentes, ao invés de efeitos digitais). Porém, o que realmente impressiona é a entrega de mais profundidade do que o próprio roteiro, além do desempenho instrumental e vocal: Allen White não apenas toca os instrumentos, mas canta com voz similar à de Springsteen.

Ainda em relação ao elenco, há dois destaques positivos. O primeiro é Jeremy Strong, que encarna uma figura paterna para Bruce. Jon não é um mero empresário, mas um amigo que o acolhe quase como um filho, o que tornaria curiosas as cenas em que comenta sobre ele com a esposa, se não fosse a evidente preguiça em exteriorizar melhor aqueles pensamentos. Isto é, ao invés de direcionar as falas de Jon sobre Bruce a personagens relevantes, como o próprio músico (ou mesmo Mike), o roteiro adota uma opção preguiçosa de colocá-lo conversando com uma figurante.

O segundo destaque positivo é Stephen Graham, que também é uma figura paterna (o verdadeiro pai de Bruce, Douglas), mas que aparentemente é o causador de muitos dos traumas do músico. A personagem é fundamental, sendo a única, além do protagonista, a ter relevância nas duas linhas narrativas. Os flashbacks aparecem em fotografia em preto e branco para expor uma infância em um lar tóxico em razão do comportamento do genitor, que, todavia, também vive bons momentos com o filho. Essa ambiguidade humaniza a personagem, mas a maneira como a narrativa costura as recordações é desnecessária e exageradamente didática (Bruce precisa mesmo visitar os locais para se lembrar do que ocorreu?). Além disso, ainda que os flashbacks sejam fundamentais para explicar o comportamento errático do protagonista, eles causam novos questionamentos: por que esses traumas são enfrentados naquele momento de sua vida? Como ele viveu entre a infância e aquele momento?

Como se não bastasse, a concepção de “Nebraska” é praticamente limitada à frieza dos fatos, sem êxito na expressão da subjetividade de Bruce. Algumas falas não ganham corpo no texto (como “estou só lutando para encontrar algo real nesse barulho”) e não fica esclarecido se o que incomoda é a fama nos moldes da indústria (por isso a vontade de fazer algo diferente), os traumas do passado (por isso os flashbacks) ou outro elemento psicológico (a “síndrome do impostor”, por exemplo, que o faz rejeitar a comparação a Elvis, ou um desconhecimento de si, que o faz afirmar “ao menos um de nós sabe (quem sou eu)” para o vendedor de carros). A ideia de não fazer uma cinebiografia abrangente (do nascimento à morte) é boa, mas a arquitetura da trama precisa ser clara o suficiente para convencer em sua ideia governante. Não é o caso de “Springsteen: salve-me do desconhecido”, em que o desconhecido remanesce desconhecido mesmo após a previsível salvação.

* Filme assistido durante a cobertura da 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).