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“Suspiria” (1977) – Aula de estética cinematográfica

Talvez SUSPIRIA não tenha um roteiro primoroso e provavelmente o elenco não faz um trabalho memorável. Porém, sua estética é um deleite para quem consegue atentar a esse aspecto. O um terror é muito mais convidativo aos sentidos do que à reflexão, estimulando sensações similares às de um sonho esquisito – ou melhor, de um pesadelo assustador.

Suzy, a protagonista, é uma bailarina que viaja dos EUA para Friburg para dançar em uma prestigiada academia. Quando chega, uma colega é assassinada e outros eventos estranhos acontecem. É apenas o começo de uma temporada amedrontadora para a jovem.

Escrito pelo diretor Dario Argento e por Daria Nicolodi, o roteiro não é o que o longa tem de melhor. Após uma sequência de eventos estranhos, Suzy se vê face a um enigma referente aos seus professores. O principal defeito do script, além dos diálogos pobres, é a explicação um pouco rasa e exclusivamente verbal para a trama. Dentre as várias interpretações possíveis, a alegoria do plot se refere à atmosfera pouco receptiva e muito inibitória de um internato: Suzy está no local para habitar e desenvolver suas habilidades como bailarina, porém distante de suas famílias e amigos, em um país completamente diferente do seu e com pessoas que desconhece. A ideia é por si só intimidadora, fazendo o roteiro uma grande metáfora para esse sentimento.

Cartaz de “Suspiria” (1977)

A evolução da atmosfera tenebrosa ocorre em uma crescente visível e a recepção nada calorosa de Suzy não é à toa: quando sai do aeroporto, chuva e ventania intensas; para pedir um táxi, enorme dificuldade (e o taxista sequer sai do carro para ajudá-la com as malas); chegando no internato, dificuldade para entrar; ao conhecer as colegas, uma exploração financeira inexplicável. A hostilidade é tão explícita que uma reação de acanhamento seria normal. Contudo, não é bem isso que ocorre, já que a protagonista é acalmada por outras circunstâncias (cuja explicação se torna óbvia rapidamente), a despeito do desespero de Sara, sua colega de quarto. Esta, interpretada por Stefania Casini, é responsável por uma das melhores sequências da película, em que a apreensão por uma fuga é substituída subversivamente por outra tensão, já que o encaminhamento dado é inesperado.

Além do roteiro, as atuações também deixam a desejar. Jessica Harper tem em Suzy uma personagem apagada (mesmo sendo a protagonista), porém aceitável. Eva Axén é certamente a pior do elenco, na medida em que a cena em que Pat é assassinada não funciona por sua atuação exagerada, quase caricatural. Por outro lado, a Senhorita Tanner de Alida Valli e a Madame Blanc de Joan Bennett são ótimas: a primeira é uma professora exigente e por vezes ríspida; a segunda, uma dirigente compreensiva e responsável – condições que não necessariamente correspondem à verdade por trás das aparências. Enquanto Bennett encanta em uma cena particularmente relevante para a personagem (seu trabalho é cirúrgico), Valli tem à ótima interpretação (expressão de intransigência, face corada ao dar broncas e pisada extremamente firme) um visual agregador (cabelo impecável retratando o seu grau de exigência e figurino formal na cor preta traduzindo a sua seriedade inabalável).

É sem dúvida a estética a maior virtude da produção. O design de som é bastante particular, quiçá inesquecível, sobretudo pela utilização do rock progressivo da banda Goblin. O subgênero musical é marcado por canções longas (a música-tema de “Suspiria” tem mais de seis minutos), abordagens rítmicas inovadoras para a época de seu surgimento, na década de 1960 (no caso abordado, a primeira parte é sonoramente cíclica e propositadamente repetitiva, sem um refrão propriamente dito, tocando inúmeras vezes no longa), e uso de fontes instrumentais pouco usuais no rock (à percussão e à guitarra se somam murmúrios mórbidos na música-tema). A trilha (composta por Argento e pela Goblin) é bem macabra.

Para garantir a atmosfera onírica pretendida por Argento, além do som, a composição visual é estonteante. O design de produção, a cargo de Giuseppe Bassan, é a característica mais marcante do longa, especialmente pelo abuso da cor vermelha, em um tom de cereja. A fotografia de Luciano Tovoli é abundante nessa coloração: no aeroporto, algumas vestimentas; na escola, várias paredes, com textura aveludada, além de janelas com vitrais (o que dá naturalidade ao filtro vermelho eventualmente usado). Por exemplo: no início, quando chove, as paredes externas da academia dão uma aparência de sangue escorrendo sobre os detalhes arquitetônicos; em outro momento, os lençóis brancos parecem divisórias avermelhadas em razão do filtro de luz utilizado, sugerindo que, por trás das aparências brandas, há algo bastante obscuro (representado pelas silhuetas que aparecem).

Esse visual é reforçado por aspectos gore presentes na película (na cena do assassinato e na do cachorro), o que não é explorado de maneira grosseira, mas razoavelmente justificado. Não se trata de um terror como os que têm surgido aos montes, já que recursos usuais, como jump scares, são pouco usados. Ao invés disso, Dario Argento prefere instrumentos mais requintados, como a lente grande angular na sequência do desfecho, explorando cenários não vistos antes de uma maneira positivamente distorcida, transportando o estranhamento de Suzy no espectador.

É possível que “Suspiria” não tenha entrado no panteão dos clássicos mainstream em razão das suas imperfeições, notadamente o roteiro e as atuações. Entretanto, a produção é uma aula de estética cinematográfica, graças à sublime harmonia entre, de um lado, os aspectos visuais e sonoros, e, de outro, o clima sinistro. Sensacional, o resultado sensitivo é diferente de tudo que já foi visto no gênero. Magnífico a ponto de os defeitos quase serem esquecidos.