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SYNONYMES – Origens, histórias, cicatrizes que são suas [43 MICSP]

A Guerra de Tróia traduz diversas personagens arquetípicas, entre elas, Heitor e Aquiles. O primeiro, bravo guerreiro e nobre príncipe de Tróia; o segundo, sem sangue real, era porém o mais belo do exército grego e também o mais letal. Dando nova roupagem à história clássica, SYNONYMES fala da indissolubilidade das origens pessoais através de um protagonista que quer reescrever sua identidade.

Trata-se do jovem Yoav, que foge de Israel para morar em Paris e um dia se tornar cidadão francês. Abandonando o hebreu na forma oral, Yoav estuda sinônimos no dicionário francês-hebreu que adquire, ao mesmo tempo em que tenta a sua nova vida na capital francesa.

Cartaz de “Synonyms

Tom Mercier consegue ser divertido e carismático como Yoav quando o protagonista é ingênuo, porém, na parte dramática, sua atuação é sofrível – basta ver a cena em que ele briga com os músicos, que tem um contexto bem delineado (o design de produção coloca paredes vermelhas na sala, enfatizando a efervescência do momento), mas a atuação dele deixa muito a desejar.

Como Aquiles, Yoav é um guerreiro em razão das circunstâncias – impostas por ele mesmo, é verdade, dado que foge de Israel. Em seu afã de abandonar as origens, ele se recusa a falar a língua pátria, estudando o dicionário para melhorar seu vocabulário francófono. Para si mesmo, repete sinônimos em diversos instantes de subjetividade mental (as palavras são ouvidas na sua voz, mas ele está apenas pensando nelas). É quase poético. Talvez a palavra mais importante para Yoav seja “liberdade”, pois tudo o que ele faz é desdobramento da escolha inicial. Simbolicamente, ele fornece a Émile o piercing preso em seu lábio, libertando-se das amarras do seu pretérito.

Dirigido por Nadav Lapid (que escreveu o roteiro com Haim Lapid), o longa é repleto de metáforas. Estruturalmente, a narrativa não é muito lógica, pois o objetivo é ser sutil e interpretativo. Quando Yoav sobe na mesa na festa para dançar e comer pão com uma moça, ele está aproveitando o que Paris lhe oferece, é um momento de gozo pela nova vida que aparentemente está tendo. A câmera na mão é ferramenta usada intensamente por Lapid, nessa cena, é para transmitir o frenesi festeiro de Yoav.

Caroline, personagem de Louise Chevillotte, se enquadra na função de Briseida, que, raptada por Aquiles, nutre com ele um romance. Contudo, Caroline pouco aparece e pouco se desenvolve. Mais importante é o Émile de Quentin Dolmaire (sem dúvida, o melhor do elenco), um Heitor filho de pai empresário que quer ser escritor. Pai e filho não se dão muito bem, mas Émile tem uma vida confortável o suficiente para praticar caridade em benefício de Yoav. Seria Heitor apaixonado por Aquiles – ou melhor, Émile por Yoav? Na cena em que Caroline os flagra muito próximos, ela pisca a luz do recinto apertando o botão do interruptor, de modo que a câmera se divide entre ela e a luz, em movimento conhecido como chicote. Yoav estaria percebendo um flerte de Émile ou seria apenas a sua ingenuidade? Até que ponto vai o seu altruísmo? Eles vão precisar batalhar? Como essa história termina?

Quanto mais Yoav abandona da sua trajetória de vida, mais ele se despe (literalmente, inclusive) de si. Em uma das primeiras cenas, ele aparece completamente nu e toma banho gelado. Depois de sair da banheira, ele escorrega e cai. Ele se desnuda perante o público para dizer que não tem história pregressa, só quer saber do futuro. Ironicamente, o futuro também exige dele que se desnude e se submeta a atos que geralmente não praticaria. A despeito de algumas dificuldades, Yoav afirma que “a vida é sublime na França”.

No terceiro ato, o plot dá uma guinada inesperada, ainda por metáforas. Cantar o hino é mais do que simplesmente entoar a letra. Há cenas bastante simbólicas, como a do desfecho, que tem grande dramaticidade. Aquiles não teve a sorte de Heitor, que nasceu com sangue real. Para ele, tudo é mais difícil. Ele pode até não gostar das suas origens, mas são suas. Os traumas dos tempos de soldado geram cicatrizes em Aquiles. São histórias até mesmo dolorosas. Mas são suas.

* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.