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“TED BUNDY: A IRRESISTÍVEL FACE DO MAL” – Mudança de foco

Ted Bundy aterrorizou os EUA na década de 1970 com estupros e homicídios que vitimaram mais de cem mulheres. Os métodos perversos e sádicos contrastavam com seu jeito charmoso e comunicativo e sua facilidade para os estudos. O cinema já se debruçou em algumas ocasiões sobre o personagem, privilegiando a violência de sua trajetória. TED BUNDY: A IRRESISTÍVEL FACE DO MAL, por outro lado, se interessa pela dimensão cotidiana do assassino que se envolve amorosamente, desperta a simpatia de muitos e afirma categoricamente ser inocente das acusações. Uma abordagem que tem vantagens e desvantagens.

Cartaz de “Ted Bundy: a irresistível face do mal

A perspectiva singular do filme se deve ao ponto de vista da narrativa ser voltado para sua namorada, Elizabeth. Nesse sentido, a cinebiografia de parte da vida do serial killer se inicia com a construção do relacionamento com a mulher e se desenvolve com as consequências para o casal das primeiras denúncias de sequestro, agressão e assassinato sobre Ted. Sendo pega de surpresa pela revelação dos crimes, Elizabeth não sabe como agir diante da possibilidade de estar se relacionando com um criminoso; enquanto isso, Ted tenta preservar o namoro, lutando para provar sua inocência.

A primeira vantagem da originalidade da proposta é mostrar as relações do assassino com Liz e Carole Anne e os aspectos mais comuns de sua vida. A noiva é afetada pelo convívio com o homem desde o momento em que se conhecem e ela demonstra relutância em se relacionar com alguém sendo mãe solteira na década de 1970, aprofundam o relacionamento como um casal que se dá muito bem, até as dúvidas da mulher quanto à inocência dele diante de tantas provas e acusações. A antiga colega de trabalho se relaciona sexualmente com Ted e fica ao seu lado apesar da inevitabilidade da condenação. Além dessas personagens individualizadas, ainda há mulheres anônimas nos julgamentos, que simpatizaram com ele devido ao seu charme.

Tratar a realidade comum de um sujeito violento e cruel a partir de estratégias visuais documentais é outra vantagem. Imagens características de registros jornalísticos sobre as investigações e julgamentos da época vinculam continuamente a trama aos acontecimentos reais. No primeiro ato, elas se intercalam a vídeos caseiros da rotina de Ted e da noiva, outra escolha que não deixa os crimes chocantes serem tratados como algo apenas possível na ficção. A aproximação entre elementos ficcionais e documentais torna a filmagem dos momentos prosaicos da vida do homem ainda mais expressivos: olhares trocados com duas mulheres em uma biblioteca, a abordagem de um policial por ultrapassar um sinal de trânsito e as interações românticas com a noiva aparentam normalidade, mas ganham significados dúbios.

As escolhas narrativas não se encontram imunes às desvantagens. É possível notar como encadear situações particulares do sujeito aos fatos da investigação confunde, inicialmente, o público. A não linearidade composta pela abertura do filme com a conversa entre Ted (preso) e Elizabeth, a sucessão rápida de momentos cronológicos distintos para mostrar as primeiras prisões e as reações dos personagens e a passagem de cidade a cidade onde o assassino cometeu os crimes são muitos recursos que dificultam a compreensão dos assassinatos e dos rumos da investigação. Quando a cronologia se consolida e a linearidade tradicional se define, a narrativa se torna coesa e capaz de indicar como o serial killer cometeu crimes brutais  em Utah, Colorado e Flórida entre 1974 e 1978 e como as autoridades combinaram pistas sutis até formar um caso completo e indiscutível.   

Existe também uma segunda desvantagem, associada ao fato de que a produção se concentra muito na perspectiva cotidiana de Ted e, assim, corre o risco de insinuar que pode aceitar a possibilidade de sua inocência. É interessante acompanhar os desdobramentos das acusações, prisões, depoimentos à imprensa e julgamentos por dentro sem apresentar concretamente os homicídios, mas, ao mesmo tempo, essa opção cria um problema: apresentar o personagem constantemente negando sua culpa e tentando provar as falhas da acusação faz o filme ser monotemático e menos complexo do que poderia – não são poucas as passagens em que se sugere haver dúvidas da responsabilidade do homem e dos procedimentos policiais e jurídicos das acusações.

Imersas entre as vantagens e desvantagens, estão as caracterizações dos personagens. Lily Collins, vivendo Liz, passa com eficiência razoável pelo arco de vulnerabilidade emocional, de dúvidas quanto ao relacionamento com Ted e às próprias atitudes e de desafio ao assassino. Kaya Scodelario, interpretando Carole Anne, serve mais como símbolo dos efeitos do carisma do assassino, conquistando mulheres de maneira nada racional. Já Zac Efron se sai bem para entregar o charme de um homem que utiliza a beleza a seu favor para mexer com as emoções alheias, porém não tem muitas oportunidades para comprovar a natureza sombria de sua personalidade (há poucos momentos que poderiam ser mais desenvolvidos para esse intuito, como a cena em que encara um cão, os closes em suas expressões misteriosas e ações discretamente incomuns com Liz).

O início e o desfecho de “Ted Bundy: a irresistível face do mal” dialogam, reafirmando a aproximação entre um filme ficcional, acontecimentos reais e técnicas documentais. A frase de abertura de Goethe, “algumas pessoas têm dificuldade de imaginar a realidade”, e os registros visuais da época apontam como um sujeito aparentemente normal com quem se convive diariamente pode esconder dentro de si um assassino cruel. É uma perspectiva interessante que se revela insuficiente para uma obra que, mesmo tendo virtudes, expõe a falta de elementos para torná-la solidamente boa.