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“THE HANDMAID’S TALE” – A atualidade da distopia

As boas distopias quebram barreiras muito rígidas e fixas entre realidade e ficção, mostrando como o ficcional encontra ecos no presente ou projeta um futuro próximo, seja ele positivo ou não. THE HANDMAID’S TALE cumpre a função de alerta, denúncia, crítica e reflexão quanto aos supostos discursos políticos de resgate das tradições e da ordem social, que mascaram (ou não) a pobreza ideológica e o ódio exalado. A República de Gilead, da série, é a representação trágica de sociedades autoritárias, misóginas e fanáticas religiosas semelhantes a alguns exemplos atuais.

Cartaz de “The Handmaid’s Tale

A referida república foi instaurada após eventos desastrosos, que culminaram com a morte do presidente dos EUA: atentados terroristas, guerras e  esterilidade de grande parte da população. Nesse momento, uma facção católica toma o poder e transforma o país em um governo autoritário baseado no Antigo Testamento e na supressão de direitos para minorias e para mulheres, especificamente. A apresentação desse universo é feita pela perspectiva de Offred, uma mulher obrigada, como tantas outras da sociedade, a ser uma escrava sexual que procrie e mantenha os níveis demográficos. Quando ela é entregue ao Comandante Fred, a relação se desvia dos padrões esperados pelo regime.

A série tem como material original o livro “O conto da aia“, escrito por Margaret Atwood, para construção da ambientação: a condição de humilhação e violência das aias (subordinadas a um sistema de rígido controle e estupradas para dar um filho ao seu Comandante e à esposa dele), a supremacia dos homens brancos na condução do país e de suas residências e o clima de medo em qualquer um que descumpra as normas estabelecidas. Os aspectos fundamentais da obra literária são ampliados pela produção televisiva para desenvolver os personagens coadjuvantes, as diferenças entre as classes e as origens do funcionamento daquela sociedade – para tal, são inseridos flashbacks que mostram os antecedentes de Gilead e as óticas de outros personagens, como Fred, Serena e Luke, através de cortes abruptos para criar choque ou de transições graduais para contrapor situações semelhantes.

A reverberação da história depende muito dos lugares ocupados pelas mulheres e pela religião naquele universo. O machismo e a inferiorização das personagens femininas aparecem de formas diversas: sua responsabilização como uma das causas da desestruturação do mundo (olhares reprovadores e ataques explícitos à liberdade sexual e comportamental das mulheres); a proibição de direitos e hábitos corriqueiros (a leitura, por exemplo); os papéis de todas elas refletirem afazeres domésticos ou sexuais (as aias, a reprodução, as Marthas, a limpeza e o preparo de refeições, e as Esposas, a administração da casa); e os novos nomes dados às mulheres quando tornadas aias, em referência ao Comandante a que servem (por exemplo, o significado de Offred é “pertencer a Fred”). Já a religião é a base essencial que justifica toda a organização social (cumprimentos básicos, como “Bendito seja o fruto” e “Que o senhor possa abrir”) e práticas atrozes de punição, em alusão à Lei de Talião, ou de reprodução, chamada de “Cerimônia”.

Não seria possível explicar a carga dramática da narrativa sem mencionar a força magnética de Elisabeth Moss. Os sentimentos de repulsa, indignação e sofrimento partilhados pelo público se devem às variadas camadas de interpretação da atriz: ela demonstra, silenciosamente, suas emoções através de expressões faciais ou detalhes discretos da composição corporal, como a contração da mão em sinal de raiva – são protestos interiorizados contra sua condição, que gradativamente, se intensificam até um desafio mais explícito em que seus olhares e semblante transmitem  desdém, angústia e insurgência. Além disso, a narração em off é um recurso complementar à sua performance, por dizer o que ela não pode expressar livremente.

Estilisticamente, a direção e a fotografia das distintas linhas temporais estabelecem o contraste entre os dois períodos. Antes de Gilead, planos muito próximos dos personagens e uma iluminação que se infiltra entre eles para evocar proximidade emocional e calor humano; em Gilead, planos distantes e gerais que oprimem os personagens ou closes que expressam os sofrimentos sentidos, sob um fino foco de luz, em meio às trevas daquele cenário violento, que não consegue dar alívio a ninguém (como se a esperança e o otimismo estivessem restritos a uma pequena parcela daquele ambiente). A aparente falta de perspectiva futura se tornaria mais aguda para as aias, representada pelo figurino: uma roupa vermelha, em referência à violência sexual e ao perigo que correm, e uma touca branca que veda a visualização do que acontece lateralmente, símbolo da preocupação exclusiva que deveriam ter com a procriação e nada mais que a desviassem de sua função primordial.

Quando se acompanha o desenvolvimento da primeira temporada, a progressão narrativa retoma os diálogos entre a série e a atualidade. A cultura do medo é o tema central trabalhado pelo sentimento contínuo de vigilância e de risco de punição a cada episódio. Há a pressão para Offred engravidar logo, o monitoramento dos “intocáveis” que atuam disfarçados, o cruel treinamento feito por tia Lucy para preparar as aias, o estranho relacionamento entre a protagonista e Fred e os brutais castigos a quem desrespeita as regras. Porém, muitos episódios se encerram com alguma atitude de desafio e ataque ao sistema (dentre elas, uma relação sexual por prazer, a alusão a um grupo de resistência ou a caminhada das aias ao som da canção “Feeling good“). Esse temor constante se evidencia também em nossa realidade de feminicídios, abusos sexuais e preconceitos às mulheres.

O último episódio de “The Handmaid’s tale” não só conclui um segmento da trajetória de Offred como também ressoa como um grito de alerta contra eventuais discursos salvacionistas e moralistas em circulação pelo mundo. Quando demonstrações de ódio, conservadorismos e autoritarismos se propagam e ganham força, apenas a união pode enfrentar tais provações. Sejam elas na ficção, sejam elas na vida real. Sejam elas já existentes, sejam elas temidas em um futuro próximo.