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“THE MASTERMIND” – O patético na história dos EUA [27 F.Rio]

As semelhanças entre “Os delinquentes” e THE MASTERMIND são curiosas. Em ambos, um crime é o disparador de discussões mais abrangentes sobre temas profundos. Ainda assim, são as diferenças entre eles que os tornam expressivos. O primeiro discute um assalto a banco a partir de uma perspectiva filosófica sobre o aproveitamento do tempo, já o segundo lança outro olhar para a efervescência cultural e política dos EUA nas décadas de 1960 e 1970 através dou roubo de obras de arte. Tomando como base um protagonista que se revela cada vez mais patético a cada minuto, a história de crime é um pretexto muito bem utilizado para fazer um estudo alternativo de personagem e de uma época.

(© Imagem Filmes / Divulgação)

No período em questão, JB Mooney é um carpinteiro desempregado que pretende roubar telas em exposição em um museu em Massachusetts. Em torno dele, os EUA vivem as mudanças sociais causadas pela Guerra do Vietnã e pela emergência dos movimentos feminista e hippie. Com o auxílio de outros dois homens, o crime é cometido e as pinturas são escondidas. No entanto, o plano perfeito não se confirma à prova de falhas como se imaginava e uma série de erros fazem com que a vida de JB saia do controle.

Em tese, a diretora Kelly Reichardt fez um heist, um tipo de filme no subgênero de ação que mostra o planejamento e a execução de um crime. Apesar da filiação imediata ao estilo, a narrativa não se restringe às convenções de uma história de assalto. Ela desenvolve uma espécie de comédia de erros que se aproxima daquilo que se encontra em “Fargo: Uma comédia de erros” e “Arizona nunca mais“. As horas antes e depois acumulam uma série de imprevistos, como a obrigação de JB cuidar dos filhos e a dificuldade de esconder os objetos roubados. A ação em si também conta com várias trapalhadas dignas de uma comédia escrachada, como o surgimento de uma testemunha no pior momento e a presença de um segurança na saída do museu. A maneira como essa e outras sequências são filmadas criam um estranhamento que produz um humor pouco usual, a exemplo da aparição de policiais para interrogar o protagonista e a chegada de mafiosos para confrontá-lo.

Diferentemente do que se poderia esperar, nem todos os filmes de assalto precisam ter um ritmo acelerado. Kelly Reichardt opta pelo esticamento dos planos e pela lenta condução dos eventos. Muitos efeitos podem ser verificados a partir dessas escolhas: o diálogo da realizadora com uma tendência contemporânea do cinema que nega a velocidade do mundo moderno; a criação do humor pelo contraste entre as ações dos personagens e as consequências de seus atos; e a evocação de uma melancolia ao redor dos incontáveis fracassos de JB. Por exemplo, esconder as obras em um estábulo ou caminhar em direção à casa de um dos cúmplices são observados sem pressa pela câmera. Além disso, a paleta de cores dessaturadas com o predomínio de tons pasteis e o acompanhamento musical com notas de jazz criam uma sensação melancólica para o fracasso de um sujeito que se ridiculariza ao insistir nos erros sem perceber suas limitações.

O protagonista é a imagem mais bem acabada da leitura proposta pela cineasta para a conjuntura histórica dos EUA. Na terra da exaltação do individualismo, ou seja, do indivíduo que se faz e constrói suas oportunidades por mérito próprio, JB se torna o oposto. Antes do roubo, ele se apresenta como um homem tedioso, de poucas palavras e de uma rotina cansativa. Vive entre o controle do pai juiz e a força prevalecente da esposa dentro da família. Cometido o crime, as falhas e os riscos logo surgem porque abusa da autoconfiança em um plano repleto de problemas e depende de cúmplices nada confiáveis. A perda das peças para os mafiosos revela uma impotência muito grande em relação ao futuro, já a superação do interrogatório dos policiais depende da influência do pai. Na fuga pelo país, a pequenez de JB cresce em uma trama no estilo road movie na qual não recebe ajuda duradoura de ninguém, mal consegue falar com os filhos nem parece ser caçado pela polícia para além das notícias de jornal.

Josh O’Connor certamente contribui para a delimitação de uma figura ao avesso das expectativas criadas para aquele contexto. O ator utiliza um tom de voz desolado e uma postura curvada (agravado pela barba por fazer) para mostrar a crescente degradação do personagem ao longo da fuga e das tentativas de obtenção de um esconderijo novo. Conforme o protagonista tem seu lado mais patético desenvolvido, a narrativa também estabelece o pano de fundo histórico dos EUA. A guerra do Vietnã e os movimentos sociais contestatórios do conflito e do capitalismo, como o hippie e o feminista, são citados de maneira indireta através de notícias de rádio e de televisão, de cartazes expostos nas paredes ou da aparição de figurantes pertencentes a grupos progressistas ou conservadores da época. A ligação entre a trama e as questões históricas mais amplas lembra a perspectiva crítica de “First cow“, projeto anterior de Kelly Reichardt em que problematizou a violência contra povos marginalizados na fundação do país. Em seu novo trabalho, as menções à política nacional são cortadas pelo surgimento dos conflitos de JB, que demonstram a existência de uma faceta alienada da população em tempos conflituosos.

A escolha de um recorte ridículo e patético para o cenário evidencia as fragilidades e contradições do mito da maior democracia do mundo. A grandiloquência das disputas políticas dos anos 1960 e 1970 é substituída no filme pelo minimalismo da abordagem dramática e narrativa. Em nenhum momento, o ritmo das ações é acelerado, os acontecimentos são filmados com grande intensidade e a mise-en-scène adquire contornos muito estilizados. E as imagens relacionadas à guerra do Vietnã e aos movimentos sociais populares são tratados de forma irônica pelo ponto de vista de JB. Isso porque são elementos rejeitados ou ignorados pelo universo em que o homem está. Um cartaz de convocação militar aparece discretamente em um dos momentos tensos vividos pelo protagonista. Uma transmissão de rádio sobre a situação política vigente é interrompida por passageiros que entram de carona em um veículo. E, sobretudo, uma figura infeliz como JB não pode distorcer os sentidos de uma manifestação pacifista em proveito próprio. Por isso, o desfecho de “The mastermind” sintetiza com um humor estranho que a conclusão da história daquele ladrão foge de qualquer obviedade antecipável.

*Filme assistido durante a cobertura da 27ª edição do Festival do Rio (27th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).