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“TODO DIA” – Enxergando além do exterior

Segundo Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático, “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Para ele, com o passar do tempo, tanto o rio quanto o indivíduo se transformam, isto é, ambos já não são mais os mesmos, pois tudo está em constante mudança, um eterno devir. Essa ideia, como diversas outras, se faz presente em TODO DIA, filme que, ao contrário do que pode parecer, não é mais um teen romance sem muito conteúdo.

Na história, A vive a fantástica situação de acordar a cada dia em um corpo diferente – independentemente de gênero ou cor da pele. As únicas regras são que ele não pode repetir a identidade assumida, bem como a pessoa precisa ter a mesma idade que ele. Quando acorda como Justin, se apaixona pela sua namorada, “Rhi” (Rhiannon), se sentindo motivado a conquistá-la a cada novo corpo assumido.

É bom reiterar: embora pareça, não é mais um filme oco à Nicholas Sparks – embora seja baseado em um livro homônimo, escrito por David Levithan. A adaptação coube a Jesse Andrews, cujo roteiro é deveras satisfatório para uma produção modesta (é o primeiro longa produzido e distribuído pelo estúdio Orion Pictures, agora revitalizado), afinal, o material-base parece de ótima qualidade, já que o plot é interessante e criativo. O texto inicia um pouco reducionista ao manter a vida de A focada em Rhi, de modo que nada mais o cativa. Contudo, ganha novas camadas quando ultrapassa a barreira limitadora do romance para criar um subplot de drama: embora A não queira interferir na vida da pessoa de cujo corpo momentaneamente se apossa, o protagonista, em determinado momento, muda de opinião, momento a partir do qual é elevado o nível da película.

Do ponto de vista temático, é possível extrair várias reflexões a partir do longa – é justamente onde reside a sua riqueza textual. Na superfície, estão duas mensagens: no início, o argumento propõe a ideia da beleza exterior; no fim, a ideia é fazer a diferença. Em outras palavras, enquanto a sinopse leva a uma conclusão óbvia (a de que é melhor se apaixonar pela personalidade de uma pessoa do que pela sua aparência), o final é exageradamente didático para propor ao espectador fazer a diferença na vida das pessoas.

No entanto, há muito subtexto em “Todo dia”, com sutilezas inerentes a debates contemporâneos de extrema relevância: identidade de gênero, orientação sexual, transtornos psicológicos, conflitos familiares e muito mais. É surpreendente que o filme tenha a coragem de abordar matérias encaradas como espinhosas para algumas camadas sociais com tamanha naturalidade e tranquilidade, simplificando o que para alguns parece demasiado complexo. Não se trata de levantar uma bandeira – para os desavisados, algumas ideias são inseridas de maneira tão orgânica e suave que se tornam imperceptíveis. Dialogar inteligentemente sobre questões em face das quais a juventude se depara é bastante elogiável.

A inspiração presente no roteiro, porém, não é reproduzida na direção – não que o roteiro seja perfeito, por exemplo, o arco dramático de Rhi parece apenas preencher lacunas na trama. Michael Sucsy apresenta um único momento memorável na tela: uma panorâmica em plano-sequência e filtro de cor azulada, em que A narra para Rhi um futuro hipotético. No resto, a melhora em relação a “Para sempre”, filme que ele dirigiu antes, é singela. Por exemplo, nos momentos de conexão entre A e Rhi, enquadramentos de two-shot seriam úteis ao invés de primeiros planos e planos médios que não sugerem muito.

Por outro lado, a direção de elenco é extraordinário. A Rhi de Angourie Rice é convincente, mas não é o ponto alto nas atuações. O fato de A habitar diversos corpos permite ao público conhecer o trabalho interpretativo de cada ator, pois geralmente a personalidade de A destoa bastante da essência da pessoa original. Justin, namorado de Rhi, é o maior exemplo, pois Justice Smith muda completamente enquanto este e enquanto A, parecendo, de fato, duas pessoas distintas. O mesmo ocorre com Nathan, vivido pelo ótimo Lucas Jade Zumann, cujo núcleo é bem instigante. O cast é muito plural, com artistas muito diferentes entre si (basta comparar Jeni Ross, Jacob Batalon e Ian Alexander, dentre outros). Há quase uma ode à pluralidade.

Embalado por uma razoável, alegre e suave trilha musical, “Todo dia” pode ser um romance inofensivo para um espectador ingênuo. Porém, aliando drama e fantasia, há muito mais que sugere o seu enredo. Basta se propor a enxergar além do exterior.