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“TUBARÃO” – A era dos blockbusters

A história é movida por paradigmas que se sucedem e passam por alterações responsáveis por iniciar novas eras de características próprias. Em 1975, TUBARÃO criou outras referências para a história do cinema e ainda conseguiu alavancar carreiras individuais em direção ao sucesso incontestável. Historiadores o consideram o inaugurador dos blockbusters, tipo de filme arrasa-quarteirão lançado, geralmente, no verão norte-americano para entreter plateias em busca de diversão – após a introdução das bases desse estilo, Hollywood voltou suas atenções (e orçamentos) para novas produções que atingissem pessoas de todo mundo com o mesmo impacto cultural, levando dois anos depois à estreia de “Star Wars – Uma nova esperança”. O futuro em si demonstrou a qualidade do trabalho do cineasta Steven Spielberg e do músico John Williams: a primeira colaboração entre eles despertou para cada um o interesse dos fãs de cinema por um jovem e inventivo diretor e por um condutor de trilha sonora magistral – a partir dali, seus nomes marcariam para sempre a história da sétima arte.

Porém, tais resultados pareciam um cenário distante para a indústria hollywoodiana e para o público em geral na década de 1970, observadores atentos de tantos problemas que apareciam na mídia ao redor do filme: dificuldades das filmagem em alto-mar (por insistência de Spielberg, as filmagens não foram feitas num tanque em Hollywood), enjoos de membros da equipe, orçamento estourado com gastos imprevistos e avarias no tubarão mecânico criado pela equipe de efeitos especiais – tantas foram as falhas que, por dias, apenas alguns segundos de filmagem foram aproveitados e o apelido “Flaws” (falhas) fosse dado ao filme pela equipe em referência ao título original “Jaws” (mandíbulas). O documentário “Jaws: the inside story” foi lançado em 2010 como um registro histórico da conturbada trajetória, mas também da capacidade de improviso a serviço da arte.

Adaptado do livro homônimo de Peter Benchley, a trama conta os terríveis ataques de um tubarão gigante à praia de Amity na Nova Inglaterra, gerando divergências quanto à necessidade ou não de fechar as praias entre o chefe de polícia Martin Brody e o prefeito Larry Vaughn. Quando uma atitude mais drástica se faz necessária, o cientista Matt Hooper e o pescador Quint se oferecem para ajudar Brody a matar o animal. Os envolvidos na obra conhecem com perfeição o material que têm em mãos e não o comprometem nem com uma abordagem muito complexa, nem com um descuido que o tornaria trash. Trata-se de um exemplar por excelência do bom suspense, da criação da tensão pela sugestão, da manipulação do espectador pelos artifícios cinematográficos empregados com esmero e criatividade. Tanto o bloco da narrativa transcorrida na praia quanto aquele em alto-mar constroem a mais genuína tensão, à sua própria maneira.

De um lado, temos a habilidade de Steven Spielberg em superar as adversidades do efeito prático escolhido para o tubarão mecânico. Utilizando o recurso hitchcockiano de esconder ao máximo a ameaça e torná-la aterrorizante pela sugestão e pela surpresa, o diretor demora a revelar a fera. Nos ataques na praia, sua câmera assume um ponto de vista subjetivo (como se fôssemos o próprio tubarão), enquadra o mar de longe ou filma sombras para ilustrar a chegada do animal. Apenas no ato final a revelação vem, num momento em que já tememos qualquer mínimo movimento das águas. Graças ao trabalho da direção, sentimos o terror proveniente de uma câmera que pode alternar entre movimentos suaves entrando e saindo da água e movimentos abruptos da fuga das pessoas do mar. A primeira sequência de ataque (sobre uma mulher à noite) e outra passada de dia com a praia lotada são exemplos nítidos das duas estratégias visuais.

O diretor também consegue apresentar visualmente seus personagens, sem linhas de diálogos expositivos. Martin Brody é um chefe de política dedicado e atarefado em demasia porque, nos momentos iniciais, já aparece andando pela cidade e sendo abordado a todo momento por um cidadão que reclama de algo. Quint é um sujeito desagradável e de difícil convivência, e surge na narrativa ilustrando essa característica, ao riscar com a unha um quadro negro, provocando um som igualmente incômodo. Além disso, outras marcas visuais pontuam a narrativa de modo a evocar o risco constante em torno dos personagens: por exemplo, os barcos vistos da janela do prédio de polícia que estão emoldurados por uma mandíbula e Quint, em determinado momento do terceiro ato, que aparece emoldurado por cordas do barco em formato de mandíbula.

Tantas virtudes cinematográficas não seriam possíveis sem o trabalho de John Williams na trilha sonora. “Theme from Jaws” ainda hoje é um clássico rítmico pela capacidade de criar tensão logo nos primeiros acordes, jamais dispensando o diálogo fácil que trava com a narrativa. A escala crescente das notas sugere o ritmo pulsante do coração das pessoas aflitas frente à proximidade de um risco mortal e, muitas vezes, se insere nos momentos de ataque para substituir o tubarão e não exigir sua presença física. A sensação atmosférica está presente nos dois primeiros atos e só desaparece no terceiro, quando a estratégia muda: os ataques passam a ser ainda mais imprevisíveis e não antecipados pela trilha sonora – dessa forma, o tubarão surge repentinamente e não é mais anunciado para nós por John Williams. Dentro do trabalho sonoro, o design de som também contribui para o conflito entre calmaria e tensão ao reforçar os ruídos diegéticos de boias no mar, ondas em choque e conversas animadas de banhistas às vésperas de um ataque.

Passado tanto tempo de seu lançamento, “Tubarão” se sustenta como um título importante para os blockbusters, para a história do cinema, para as carreiras de Spielberg e Williams e para todo o público interessado por arte. Ser referenciado até hoje por diversas obras da cultura pop não é tarefa para muitos. Se é possível ver nos cinemas atuais grandes produções milionárias, o embrião de tudo isso veio dos mares. Assustando e empolgando gerações e mais gerações.