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“UM LUGAR SILENCIOSO”: Um bom filme surreal

Mais um filme pós-apocalíptico? Dessa vez, porém, o gênero não é o de sempre, mas o terror. Ainda assim, UM LUGAR SILENCIOSO não é o tipo de filme que existe além da sala de cinema, o que reduz a sua incontestável boa qualidade.

Em um futuro muito distante, surgem seres que dizimaram a população mundial. As misteriosas criaturas são cegas e dispostas a atacar qualquer objeto ou pessoa que faça algum barulho – o que inclui a fala. O filme então acompanha a rotina de uma família que precisa viver com a restrição sonora: é esse o seu argumento.

Dos pés descalços correndo pelo chão à carícia no cabelo, a edição de som tem precisão cirúrgica; melhor ainda é a mixagem, que dosa impecavelmente o volume de cada ruído. Não por outra razão, o barulho das folhas rolando no solo tem menor volume que o da água corrente, que, por sua vez, tem volume menor que uma cachoeira – e todos esses, cada um com seu nível volumétrico respectivo, são ruídos que normalmente passariam despercebidos. Faz todo sentido o grande aumento do volume, pois a família está habituada à quietude. É magistralmente explorada a subjetividade sonora: para colocar o espectador no lugar das personagens, o que é ouvido pelo público é o mesmo que a personagem ouve. Exemplo é a lírica cena em que Evelyn (Emily Blunt) coloca um fone no ouvido de Lee (John Krasinski), quando toca a música “Old man” (Neil Young). Os sons intradiegéticos funcionam realmente bem, enquanto a trilha sonora é pouco útil e muito danosa (assim como a maioria dos ruídos acusmáticos).

Krasinski participou do longa como produtor executivo, corroteirista, ator e diretor, sendo possível afirmar que, na direção, ele é muito promissor (é o seu segundo longa, precedido de “Família Hollar”, lançado no Brasil diretamente para a televisão). Sua proposta é um filme de gênero (terror), dentro da qual ele é bastante eficaz. Mesmo o uso dos jump scares é bom e sem exagero, já que não é despropositado, fazendo parte da narrativa. A direção de arte é muito boa, usando cenários semelhantes a “Sinais” – entretanto, o visual das criaturas se assemelha aos xenomorfos, ainda que tenha várias especificidades. Também a fotografia é ótima, com uma iluminação que quase não erra. A narrativa é contada de maneira inteligente: já que são pouquíssimas as falas, as lacunas que precisam ser preenchidas o são através de outros recursos, especialmente jornais.

É possível sentir empatia pelas personagens, que ficam extremamente limitadas em razão dos seres aterrorizadores (uma simples oração antes do jantar precisa ser em silêncio). O elenco é excelente: Krasinski e Blunt são convincentes enquanto casal apaixonado (o fato de serem casados na vida real ajudou bastante), ela transmite medo e desespero de maneira orgânica; Millicent Simmonds também vai bem; e Noah Jupe é extremamente realista no pavor. Entretanto, as lacunas e incoerências do texto, ainda que não tão grandes (se comparado a outros), escancaram que se trata apenas de um bom filme surreal. Ou seja, o calcanhar de Aquiles é, como costumeiro no terror, o roteiro. A história é eficiente no não muito profundo drama familiar, mas é uma eficiência efêmera, durando apenas a sessão.

(Este parágrafo – e apenas ele – contém spoilers) Como, em um lapso de quatrocentos dias, Lee não bolou uma armadilha ou um lugar em que estaria seguro (isso existe até em “Eu sou a lenda”)? Como aquele prego estaria naquele local e de baixo para cima? Por que o zumbido do aparelho da menina surge apenas nas horas convenientes? Por que Lee levou o filho, ao invés da filha maior, para explorar a região? Para essa última pergunta, a resposta provável é o tom machista do script, já que Evelyn é apenas a donzela indefesa e sempre à espera do próximo perigo enquanto aguarda ser salva. Assim, a filha não poderia sair e se arriscar, devendo ficar em casa com a mãe, quem sabe fazendo tarefas domésticas, para que o filho menor (porém, menino) aprendesse a proteger as mulheres da família. Qual o propósito narrativo para a saída da menina (já que nada acontece)? Por que o menino tem mais coragem na ausência dos pais do que na companhia deles?

Com tudo isso não se quer dizer que “Um lugar silencioso” é ruim, definitivamente não é esse o caso, já que, enquanto tensão momentânea, ele é plenamente funcional. A questão é que os aspectos formais estão em um nível de excelência que mereceriam um roteiro melhor – um roteiro que tivesse mensagem, uma história melhor elaborada e subtramas consistentes. São esses equívocos que impedem que o longa reverbere fora do cinema.