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“UM SEGREDO EM PARIS” – Exercício interpretativo

O primeiro aspecto de UM SEGREDO EM PARIS que chama a atenção é a sua curtíssima duração: setenta minutos. Assistindo ao filme, logo se percebe uma proposta diferenciada, não sendo apenas mais um longa francês de ritmo lento, mas uma obra passível de inúmeras interpretações e que exige um considerável exercício do espectador nesse sentido.

O enredo da película é deveras singelo: Mavie é uma jovem insegura que se muda para Paris na esperança de concretizar seu sonho de se tornar escritora, mas acaba encontrando em um homem de mais de setenta anos um emprego, um lar e um vínculo bastante peculiar. O segredo a que se refere o título diz respeito ao idoso: Georges tem um passado que pode afastar Mavie. O título original, “Drôles d’oiseaux” (“Pássaros estranhos”, em tradução livre), é mais coerente com o viés metafórico do longa.

Paradoxalmente, uma obra tão metafórica pode afastar o público justamente por essa razão – tal qual a arte abstrata, que não tem boa recepção popular. Nada no longa se assenta na obviedade, ao revés, é necessário prestar atenção para construir o sentido da película. Em tese, isso deve ser feito em todos os filmes, ocorre que, em “Um segredo em Paris”, sem esse cuidado, é possível sair da sessão sem entender nada. Por exemplo, são longos os momentos em que Mavie fala sozinha, em voz metadiegética (não se trata de voz off, pois alheia à diegese propriamente dita, tampouco voz over, já que não é propriamente uma narração, nem é completamente alheia à diegese, daí porque metadiegética, um meio-termo), gerando eventualmente uma dúvida quanto ao conteúdo do discurso, em especial quando surgem os diálogos.

O exemplo mencionado, contudo, é o caso mais fácil de interpretação. O mal súbito sofrido pelas gaivotas e sua relação com energia nuclear são questões bem mais complexas e polissêmicas. Quanto ao aparecimento de uma terceira personagem, um falso intermediário entre Mavie e Georges, a diretora e roteirista Élise Girard dá uma pista clara em um plano-detalhe em um jornal – mas essa é exceção de direcionamento do espectador, que raramente ocorre. Surgem diversas mensagens sutis, como quando a protagonista diz a Georges que uma literatura específica não o emocionaria por ele ser homem (e a autora, evidentemente, mulher) ou nas ocasiões em que ela ouve gemidos em seu primeiro lar parisiense.

Uma das maiores virtudes do longa é a exploração do estonteante cenário parisiense, em bons enquadramentos escolhidos por Girard e pelo diretor de fotografia Renato Berta. A fotografia é ainda certeira  ao inserir ao menos um elemento vermelho ou rosa nos planos em que Mavie aparece, salvo em seu novo quarto, de tons azulados e esverdeados, onde ela não tem seus melhores momentos (enfatizando a frieza do momento). A montagem, porém, é muito ruim, por duas razões: primeiro, porque episodicamente usa uma pontuação estilizada desnecessária (“Um segredo em Paris” não é “Star Wars”); segundo, porque faz elipses muito abruptas – personagens aparecem e somem dando uma sensação de que muitas cenas foram tiradas do produto final (o que de fato pode ter acontecido e explicaria alguns gaps duvidosos).

Percebe-se que Girard tem pleno domínio das suas personagens e aplica esse conhecimento na mise en scène. Não por outra razão, a livraria de Georges é bagunçada antes da chegada de Mavie, ficando mais organizada com o passar do tempo (e com o intenso trabalho dela). A própria protagonista muda um pouco a sua conduta: no início, desajeitada tanto nos trejeitos quanto na vida pessoal, com o tempo, todavia, ela organiza a si mesma e a livraria, inclusive transmitindo maior segurança pela linguagem corporal (notadamente o caminhar). Lolita Chammah parece fazer mais do que o texto originalmente previa: na vagueza da personagem, a atriz extraiu a mudança de personalidade e a traduziu como pôde.

O Georges de Jean Sorel, entretanto, consiste na personagem mais enigmática e (também por isso) mais interessante do longa. Trata-se de um idoso amargo que afirma que “a vida é nojenta” e que “pessoas são analfabetas”. Concebido para ser detestável, Georges é machista (“você não gasta muito para uma mulher” é uma fala que não pode passar despercebida) e só não largou a Europa, segundo diz, porque as outras opções eram a África e a América do Sul. Por outro lado, é nele que reside o grande segredo que coloca alguma turbulência na trama (que, a bem da verdade, tem ritmo lento) e também os melhores momentos cômicos (como a cena do carro e do homem desmaiado) – que jamais chegam ao nível hilário, mas representam um humor sutil satisfatório.

Sutileza, inclusive, é uma palavra que resume bem “Um segredo em Paris”. Talvez ela esteja em nível extremo, afastando parcela do público. Pode parecer um amontoado de delírios sem sentido, porém, com disposição, é possível extrair um momento aprazível do longa. Basta querer exercitar a interpretação.