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UTØYA – 22 DE JULHO – Um inimigo em comum [42 MICSP]

(Clique aqui para ler a nossa crítica de “22 de julho, filme que retrata o mesmo evento)

De acordo com a Lei nº 13.260, de 2016, o terrorismo consiste na prática de atos (especificados na lei) por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado e expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. O terrorista é o inimigo de várias nações. Mas e se o inimigo for um nacional, como em UTØYA – 22 DE JULHO?

O longa retrata um episódio real de ataques na Noruega ocorridos em 22 de julho de 2011. Poucas horas depois de explodir uma bomba em Oslo, um radical de direita ataca jovens integrantes de um partido de esquerda que estão em um acampamento na ilha de Utøya. A protagonista Kaja precisa não apenas lutar pela própria sobrevivência como também salvar sua irmã mais nova, Emilie. O filme acompanha sua hercúlea tarefa.

Cartaz de “Utøya – 22 de julho

Inquestionavelmente, o que a produção tem de melhor é a direção de Erik Poppe. Na primeira cena, o que parece ser uma quebra da quarta parede é a introdução da personagem principal e de seu relacionamento familiar – um dos raros momentos em que seu arco dramático ultrapassa o evento no qual a película é centrada. Poppe faz uma exposição crescente dos danos provocados pelo terrorista: uma menina quebra um tornozelo, um rapaz aparece ferido de sangue, uma moça surge baleada (o ferimento, por sinal, é bem feito), e assim por diante.

O que faz da direção um diferencial reside em dois aspectos. Primeiro, o trabalho é muito mais sonoro do que visual: quando Kaja entra em uma barraca, por exemplo, ela conclui que o terrorista está próximo porque ouve seus passos, todavia não consegue vê-lo. Igualmente, os disparos ressaltam a ótima mixagem de som, que usa praticamente os mesmos ruídos, repetidos, variando apenas seu volume para transmitir maior ou menor aproximação do perigo. Na prática, isso gera muito mais tensão. Diferentemente do espectador, as personagens não veem o que está acontecendo (tampouco sabem tratar-se de um ataque terrorista, chegando a cogitar que estão em um exercício), o que eleva seu pavor.

O esmero sonoro, entretanto, não reduz a qualidade visual do longa, que também merece elogios a partir de duas perspectivas. De um lado, Poppe não mostra o terrorista agindo, expondo, no máximo, os danos que ele já causou. De outro, o diretor filma sua obra integralmente em plano-sequência – embora use truques para disfarçar os cortes, como fez Hitchcock em “Festim diabólico”, a impressão de plano-sequência é eficaz – e, mais do que isso, torna a câmera tão viva que faz do espectador praticamente uma personagem invisível, quase um participante.

Em outras palavras, aparecem pessoas depois de serem baleadas, mas não enquanto estão sendo baleadas. O ar de mistério é benéfico para dar verossimilhança ao desespero das personagens, o que se soma à maneira como o longa é filmado. Como found footage, a película acompanha o itinerário de Kaja, se esgueirando e se escondendo por onde pode, encontrando colegas no caminho. Fiel acompanhante, a câmera a segue a todo momento, seja dentro da barraca, seja embaixo de uma árvore. Com personalidade, todavia, não deixa de visualizar outros elementos do cenário, isto é, não filma apenas Kaja. Em alguns momentos, chega a se deitar no chão com ela, como qualquer pessoa faria se estivesse junto.

Anna Bache-Wiig e Siv Rajendram Eliassen não dão profundidade às personagens de seu roteiro, que acabam sendo unidimensionais. Kaja (Andrea Berntzen, boa atriz que praticamente monopoliza a atenção) é a altruísta; Emilie é a irmã rebelde e bagunceira – que, no roteiro, serve como macguffin -; Magnus (Aleksander Holmen, convincente) é o jovem inseguro e um pouco perdido. Os diálogos, mesmo singelos, fazem sentido em seu contexto. Outro problema é que as personagens são quase desconhecidas, o que faz com que o seu drama não comova como poderia.

Embora “Utøya – 22 de julho” reconstrua um evento real, sua universalidade é notória. O filme erra ao demonizar a direita, alertando para o crescimento do extremismo da direita na Europa. O que se deve lamentar é qualquer extremismo. O grande inimigo, que deveria unir todas as pessoas, é o radical, independentemente da posição político-ideológica.

*Filme assistido durante a cobertura da 42ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.