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“VALOR SENTIMENTAL” – Valor artístico [27 F.Rio]

O surgimento de uma obra de arte depende de muitos fatores. O contexto interfere nas condições de produção, criando facilidades ou obstáculos. As escolhas estéticas do criador possibilitam sensações e características diferentes para a apreciação. Um conjunto de memórias e vivências pessoais ajuda a influenciar as percepções do realizador sobre determinado tema e visão de mundo. Em VALOR SENTIMENTAL, as filmagens de uma obra fictícia são a porta de entrada para discutir as dores e a angústias de uma família de artistas.

(© MK2 Films / Divulgação)

A família é formada pelo diretor de cinema Gustav, a filha mais velha e atriz Nora e a filha mais nova e atriz quando criança chamada Agnes. As duas irmãs precisam lidar com a complicada relação com o pai, quando ele reaparece para propor a Nora um papel em seu novo filme após quinze anos inativo. A recusa da oferta e a substituição por uma estrela de Hollywood despertam frustrações e conflitos mal resolvidos do passado.

Existem muitos filmes em “Valor sentimental“, todos eles articulados de maneira expressiva para que um se desdobre no outro e dê conta de várias experiências sensíveis. Nos primeiros minutos, a narrativa confere protagonismo à casa como um lugar de memória da família. A narração em voice over acompanha o ponto de vista de Nora, enquanto relembra a infância com Agnes e a escolha de escrever uma redação na escola sobre a moradia. O espaço é muito bem aproveitado, pois os corredores e cômodos remetem às brincadeiras das crianças, as discussões dos pais entreouvidas pelas portas fechadas e outras lembranças daquele período. Mais adiante, a narração, as memórias e os flashbacks transitam para a perspectiva de Gustav e para um passado mais distante. A relação que o homem construiu com o local, inevitavelmente, passa pela morte trágica de sua mãe, o que estabelece uma dependência nada sadia para ele.

Transcorridos esses primeiros momentos, o diretor Joachim Trier direciona a produção para as relações familiares conturbadas de Gustav, Nora e Agnes. O roteiro do novo projeto do pai e os ensaios para a filmagem revelam que o trabalho e os laços pessoais se misturam. Primeiramente, a recusa de Nora em aceitar o papel de protagonista reabre feridas não cicatrizadas de irmãs que se sentem preteridas por um pai interessado apenas em dar atenção aos atores com quem trabalha. Em paralelo, elas ainda sentem os efeitos do divórcio dos pais e a cobrança excessiva de Gustav quanto às suas escolhas profissionais e pessoais. Ao mesmo tempo, as negativas de Gustav de que a história se baseia em sua própria se tornam menos críveis a cada nova cena ensaiada. É importante também notar a mudança na atuação de Elle Fanning, já que Rachel Kemp deixa de ser a mera estrela midiática preocupada com as aparências para incorporar as emoções conflitantes de tentar encarnar uma personagem distante de seu repertório de conhecimento.

Curiosamente, as nacionalidades do elenco simbolizam a questão de um projeto de origem familiar que conta com um elemento de fora. À exceção de Elle Fanning, atriz estadunidense que condiciona suas cenas serem faladas em inglês, os outros atores principais são europeus (sueco, dinamarquesa e norueguesa) e a família é norueguesa. O entrelaçamento entre o profissional e o pessoal igualmente se expressa pela forma como Joachim Trier trabalha a metalinguagem. O exercício de fazer um filme pode se manifestar com citações textuais mais diretas ou através da composição visual de algumas sequências. É assim, por exemplo, quando Gustav conversa com Rachel sobre a construção de personagem ou outros colaboradores a respeito das escolhas criativas em geral. Em outro caso, o cineasta mostra seu humor ao dar de presente de aniversário ao neto DVD’s de filmes impróprios para sua faixa etária. Acima de tudo, a abordagem metalinguística é desenvolvida a partir de sequências que parecem ser reconstruções de eventos íntimos da família, mas se revelam ensaios para o filme de Gustav.

Quando a narrativa se aprofunda sobre a dimensão íntima dos personagens, o trio principal passa a ser compreendido de formas diversas. Nora é apresentada como um mulher insegura e abalada pela pressão de uma grande audiência para uma peça teatral, possivelmente por ser um reflexo dos traumas que ainda carrega da criação paterna. Se ela pode sofrer com a exposição da vida artística, pode indicar também uma força de espírito para questionar o pai quando este não concorda com suas ações ou diminuiu seus defeitos. Gustav é introduzido como uma figura de difícil convivência por ser exigente e não ter filtro nos comentários, mas tem suas contradições ao demonstrar um humor provocativo nas situações mais inesperadas e se esforçar para retomar o contato com as filhas. E Agnes desfaz as impressões iniciais de ser uma jovem submissa ao pai e incapaz de manifestar sua próprias vontades, assumindo uma posição de sustentação emocional da família para garantir a reconciliação entre o pai e a irmã. Apesar de Stellan Skarsgard ser muito eficiente na construção e no desenvolvimento de camadas de Gustav, são Renate Seinsve e Inga Ibsdotter Lilleaas que mais retratem o fundo emocional da comédia dramática.

Joachim Trier tem o mérito de articular facetas distintas em “Valor sentimental” de forma próxima ao que já tinha feito em “A pior pessoa do mundo“. Em sua obra anterior, o drama de amadurecimento abordou a fugacidade das relações sociais e profissionais da juventude contemporânea. No seu mais recente trabalho, a profundidade da arte se expressa no encontro entre tarefas profissionais e memórias pessoais. A princípio, o conflito central estaria relacionado à relação entre pai e filha. À medida que o tempo passa, a amizade entre duas irmãs ganha um peso emocional muito grande que comove tudo e todos. Basta reparar na cena em que Agnes e Nora leem o roteiro de Gustav e demonstram o amor recíproco entre elas. É um momento chave para novamente investir na aproximação entre a retomada de situações do passado e a produção de sequências para o filme de Gustav. Como resultado, a arte pode ser um pedido de desculpas e o reencontro entre pessoas que se amam.

*Filme assistido durante a cobertura da 27ª edição do Festival do Rio (27th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).