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“VICE” – Atemporal, universal, sarcástico e fenomenal

A prova de que a linguagem cinematográfica pode fazer um filme alcançar status superior ou inferior a depender do seu uso está no longa VICE. Sem seu texto perspicaz e de humor ácido, o filme se tornaria tedioso. Sem uma linguagem moderna, seria ordinário. Com as qualidades que tem, é excelente.

O que a produção faz é extrair uma comédia cínica a partir de um plot, em tese, nada chamativo: trata-se do retrato da ascensão política de Dick Cheney, um jovem preguiçoso e irresponsável que se torna expert no alpinismo político, tornando-se vice-presidente na gestão George W. Bush e encontrando poderes jamais imaginados por nenhum outro vice.

Cartaz de “Vice

Do ponto de vista estrutural, o roteiro de Adam McKay elege dois momentos emblemáticos na narrativa: uma conversa do protagonista com sua esposa e o fatídico 11 de setembro de 2001. No primeiro caso, Cheney é exemplo de que um pontapé pode colocar alguém para frente: humilhado pela esposa (mediante xingamentos e uma simbólica mosca o rodeando e pousando em sua face), ele decide mudar a sua vida. Quanto ao 11 de setembro, o episódio serve como ápice da sua carreira política, que teve como marca a retórica percuciente, útil, dentre outros, para malabarismos jurídicos que justificavam atos arbitrários e atrocidades clandestinas.

Christian Bale pode não ter em Cheney o melhor desempenho da sua carreira, mas faz inquestionavelmente um trabalho sensacional, encarnando o ex-vice estadunidense com maestria. A maquiagem de Brian Wade ajuda muito na composição do papel, porém é inegável sua atuação impecável – o mesmo ocorre com Sam Rockwell (maquiado por Jamie Kelman), que vive George W. Bush e deste consegue imitar o jeito de falar e a expressão franzida do ex-presidente. Para se parecer com Cheney, o camaleônico Bale engordou bastante (até porque a mudança corporal é a sua especialidade como ator) e apostou no olhar cabisbaixo, na postura arcada e no reduzido volume da voz. E dá certo, pois ele está irreconhecível.

Amy Adams não tem o mesmo brilho que Bale ao interpretar Lynne, esposa de Cheney (embora também pareça ter engordado para o papel), mas se destaca em dois momentos. O primeiro é aquele emblemático já mencionado, o segundo é um discurso que pode ser bem resumido na fala “em Nova Iorque, as mulheres estão queimando seus sutiãs. Sabe o que nós, no Wyoming, fazemos com os nossos sutiãs? Nós os vestimos”. Lynne é ambiciosa, inclusive com certa arrogância ao qualificar o cargo de vice-presidente como insignificante, o que combina com o novo Dick Cheney que vai se formando, pois o protagonista passa por uma evolução muito grande na sua trajetória como “DC insider”. Contrário a pautas humanistas e ambientais, Cheney tinha um fascínio pela presidência comparável apenas à sua fome de poder.

Se fosse necessário escolher apenas uma qualidade de “Vice”, provavelmente o que mais se destaca é a linguagem cinematográfica adotada por Adam McKay. Repetindo um pouco a mistura entre uma abordagem mordaz do tema abordado com ferramentas variadas e modernas – algo que ele tinha feito no ótimo “A grande aposta” -, o diretor abusa de metalinguagem e tem sacadas que beiram o brilhantismo (a cena pós-créditos é hilária!). O filme é abundante em inserções (geralmente imagéticas) extradiegéticas (o filme se assume como tal), cuja função varia entre cômica (referência a Galactus), metafórica (pires e xícara), ilustrativa (bomba no Camboja), provocativa (a frase sobre o homem calado) ou didática (as peças lançadas no tabuleiro de Washington). A interrupção da narrativa ocorre diversas vezes como uma licença poética para explicar ou ironizar algo, o que torna o longa mais divertido.

A metalinguagem aceita a quebra da quarta parede (o texto sarcástico do final é de uma sagacidade ímpar), contudo o recurso que recebe preferência é a narração (quase sempre voice over) na voz de Jesse Plemons, que inicia com um discurso extradiegético (uma divagação) e se aproxima da diegese (uma explicação que auxilia nas elipses) até nela ingressar. Plemons é praticamente a voz de McKay na película, conduzindo o espectador durante a projeção. A montagem é veloz e dinâmica (pode parecer um detalhe, mas a sincronização com os interruptores em determinada sequência é amostra do engajamento do longa). Por exemplo, a sequência de montagem paralela combinando duas cenas, com a câmera girando em trezentos e sessenta graus ao redor das personagens, é de uma lucidez técnica impecável. A trilha musical é coesa e um grande acerto é dispensá-la quando ela não é necessária (por exemplo, quando uma das filhas explica a origem de seu sofrimento).

Na primeira camada, “Vice” é um filme que recorta a história recente dos EUA e escancara a podridão dos bastidores políticos. Em uma camada mais profunda, é uma semibiografia de um homem cujos atos reverberam ainda hoje no mundo todo. Indo ao seu âmago, a obra é polissêmica, começando na capacidade humana de autotransformação, transitando pelo funcionamento da política e encerrando em princípios éticos. Não é uma produção de interesse restrito, cabendo um paralelo até mesmo com o Brasil hodierno (por exemplo, na cena pós-créditos). Aproveitando o espírito do filme, uma proposta de reflexão à altura: como estaria o mundo hoje se aquele final falso fosse verdadeiro?