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“VIDAS DUPLAS” – Duplicidade ao pé da letra

À primeira vista, VIDAS DUPLAS pode não parecer o nome ideal para o respectivo filme, mesmo sendo tradução exata do original francês (“Doubles vies”). O que haveria de dúbio (ou duplo) em seu tema, a pós-modernidade? Ocorre que o longa é repleto de ambiguidades e duplicidades que levam à inafastável conclusão de que o título foi bem escolhido – principalmente pela maneira que ele deixa o espectador ao final.

A película começa com uma longa conversa entre Léonard e Alain, a partir da qual surgem todos os desdobramentos narrativos. Aquele é um escritor, este, seu editor. Além disso, são amigos. Suas vidas estão conectadas por um laço maior que profissional ou de amizade: sem perceber, a revolução digital afeta os dois de maneiras similares, no âmbito profissional e no pessoal.

Cartaz de “Vidas duplas

O mencionado prólogo é coerente com o ímpeto do longa, ou seja, tem a velocidade da pós-modernidade. Sem permitir que o espectador se ambiente e sem necessidade de introduzir a dupla, em segundos eles já estão discutindo a liquidez dos tempos atuais. Em um debate muito intelectual (expressão que descreve todo o roteiro do filme), Léonard e Alain trocam farpas: o primeiro afirma rejeitar “essa sociedade materialista”, adotando inicialmente um discurso anticapitalista, embora, posteriormente, admita um flerte com o anarquismo (quando assume não gostar de autoridade e querer o caos); o segundo o rotula de narcisista, porém na prática sua conduta não é tão diferente.

Guillaume Canet faz de Alain uma personagem não muito palatável, seja pela hipocrisia na comparação entre discurso e conduta, seja pela sua atuação, cuja artificialidade é incômoda. Canet é o ponto fraco do ótimo elenco, fazendo com que todas as falas soem artificiais – basta atentar para o timing das palavras, que são proferidas com uma pressa incompatível com o peso do seu conteúdo. Salvo quando o que Alain diz é uma frase de efeito (do tipo “estamos em uma sociedade que só respeita o dinheiro e o poder”), os diálogos parecem nada mais do que palavras decoradas para serem repetidas. Evidentemente, diálogos são isso, contudo faltou ao ator dar naturalidade às conversas.

A título comparativo, Vincent Macaigne faz de Léonard muito mais empático não tanto pelas atitudes da personagem (cuja postura ética enquanto escritor é bem questionável), mas pela autenticidade da sua interpretação. Em alguns momentos, a carência do romancista quase elide a autoficção que ele escreve, cujas consequências a terceiros podem ser danosas: no trato com a esposa, ele constantemente pede atenção (quer que ela seja solidária no impasse com Alain, reclama quando ela não atende o celular etc.), o que é estranho em se tratando de um escritor dedicado a expor seus casos amorosos pretéritos.

De todo modo, Macaigne é muito melhor em cena que Canet, chegando a pausar algumas falas para, expressamente, escolher as palavras a serem ditas (o que costumeiramente é uma adição do ator, não uma previsão do roteiro). Quando Macaigne divide cena com Juliette Binoche, quase se esquece da verborragia exacerbada da película, diante de tamanho talento (em dose dupla). A atriz faz talvez a personagem mais engraçada, considerando a crise existencial pela qual Selena vive e, claro, a ótima piada autoficcional (parafraseando Léonard) da sequência final.

O roteiro de Olivier Assayas constrói personagens com conteúdo, todavia o cineasta não consegue – seja no roteiro, seja na direção, que também assina – imprimir dinamicidade ao filme. As cenas são longas, sem um trabalho de câmera que se destaque, mas com diálogos homéricos e não raras vezes cansativos (a verborragia já mencionada). Fazer filmes baseados quase que exclusivamente em conversas já é muito difícil, o problema maior que Assayas cria para si mesmo, contudo, é que há um fiapo de narrativa somado a um vasto universo temático. Talvez seja essa a ambiguidade a que ele queria referir-se no título da obra.

O tema foi muito bem escolhido e é abordado com profundidade. Há um emaranhado imenso de questionamentos concernentes à era digital: se as pessoas não gostam mais de ler, por que alguns blogs conseguem tantos acessos? Bibliotecas continuarão fazendo sentido considerando a aceitação crescente de ebooks e audiobooks (o mero fato da possível obsolescência daqueles face a estes já é muito significativo)? Se a internet o acesso à cultura foi democratizado pela era digital, por que o consumo da arte é cada vez menor? Há uma relação entre a necessidade de relaxamento (músicas especializadas, séries, livros de colorir para adultos etc.) e a venda de literatura industrial (“romances baratos como os de Nora Roberts”, diz uma personagem)? Sobrou até para os críticos de arte: serão substituídos, enquanto intermediários da subjetividade, por algoritmos? (Nesse caso, há um equívoco ideológico, pois o papel do crítico, desde André Bazin, não é recomendar filmes, mas fazer com que eles tenham um impacto maior perante o público)

Vidas duplas” é tão preocupado em apresentar e encarnar duas faces de várias moedas que essa sua virtude acaba sendo um defeito. O espaço do contraditório é positivo – do contrário, sequer haveria filme, tendo em vista sua dependência dos debates -, porém não fica claro o que Assayas quer dizer com tudo aquilo. Enquanto uma personagem lamenta ao afirmar que “tudo é feito para que as pessoas não saiam de casa”, outra comemora que “a internet espalhou a palavra”. Diante de elucubrações tão profundas e prolíficas, a trama fica em segundo plano, e o espectador, dividido.