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“VIDRO” – A conclusão irregular da trilogia

Heróis e vilões podem existir no mundo real, dependendo de como sejam as reações dos indivíduos a traumas e limitações físicas ou à busca por seu lugar no mundo. Essa é a visão incomum de M. Night Shyamalan para o universo dos super-heróis e das HQ’s. Sua devoção aos quadrinhos foi iniciada com “Corpo fechado” de 2000, desenvolvida com “Fragmentado” de 2016 e concluída com VIDRO – o desfecho, entretanto, não está à altura da paixão demonstrada pelo cineasta, que falha em acrescentar muitos elementos ao terceiro capítulo da franquia.    

Cartaz de “Vidro

Após os eventos de “Fragmentado“, Kevin Crumb e suas vinte quatro personalidades diferentes passam a ser perseguidos por David Dunn, o homem indestrutível cuja fraqueza é a água. O jogo de gato e rato é interrompido quando são presos em um hospital psiquiátrico pela Dra. Ellie Staple, que acredita se tratar de um distúrbio psicológico a crença em superpoderes; lá, eles se encontram com Elijah Price, o homem dono de uma mente extremamente perspicaz e de ossos muito vulneráveis. A história se assume desde o início como algo saído de uma graphic novel, dispensando eventuais doses de realismo e considerando os temas e as situações já iniciados nos filmes anteriores como o verdadeiro protagonista.    

Em seus primeiros minutos, o alto nível das produções anteriores se mantém graças à eficiente reapresentação dos três personagens principais. Através de cores atribuídas a cada um deles e presentes no figurino, no design de produção e na fotografia, suas posições na narrativa são reafirmadas: o heroísmo de David representado pelo verde; a vilania de Kevin, pelo amarelo; e o perigo mortal de Elijah, pelo roxo. Além disso, a câmera cria suspense ao não enquadrar totalmente David e Kevin (ela se encontra às costas deles, obstruída por algum objeto, envolta na escuridão ou voltada para o desconhecido do fora de campo). Para completar, a trilha sonora estabelece a tensão ao ser composta remetendo à contagem regressiva de um relógio ou ao choque de instrumentos pesados.

À medida que o tempo passa, os problemas de roteiro se revelam a partir de uma trama inchada: além de apresentar novamente o herói e os vilões e situar o antagonismo entre eles, ainda há o arco caracterizado pelos misteriosos interesses da psiquiatra Ellie – o conflito entre a médica tentando provar que não existem super-heróis e os outros três personagens buscando provar sua existência ao mundo desperta curiosidade, porém é algo extenso demais para ser tão rapidamente abordado como foi. O excesso de personagens é outra desvantagem para a narrativa, que apenas concede diálogos expositivos ao filho de David, à mãe de Elijah e à sobrevivente do sequestro feito por Kevin (suas funções são explicar as convenções das histórias em quadrinhos). A própria montagem não colabora e lhe falta organicidade para saltar de um núcleo a outro e justificar os flashbacks.  

Mesmo as qualidades de Shyamalan como roteirista não são vistas aqui. O roteiro abusa dos diálogos expositivos (a explicação do “poder” de Elijah e do destino da família de David) e de conveniências intragáveis (a fuga de Elijah e Kevin das celas onde eram presos só foi realmente possível devido a um hospital sem qualquer funcionário competente de serviço) para facilitar o avanço da trama. Nem a própria direção salva esses momentos e ainda frustra os espectadores com uma sequência de ação confusa no clímax do terceiro ato – o confronto final é mal situado geograficamente (não se sabe a relação espacial entre os personagens e mal se entende o que acontece e como acontece); tem muitas informações inseridas abruptamente para explicar algumas reviravoltas, que se perdem no caos visual; e os planos gerais escancaram os efeitos visuais duvidosos que não intensificam a ameaça existente com a personalidade mais brutal de Kevin.

Em geral, o elenco acompanha as deficiências do filme. Bruce Willis está no piloto automático, não se esforçando para compor minimamente David Dunn; Sarah Paulson parece perdida sem sequer entender o significado de Ellie Staple, levando-a a uma inexpressividade nociva à importância da personagem na trama; Samuel L. Jackson segue o mesmo estilo de atuação vazia de Bruce Willis, excetuando-se o tique nervoso em seu rosto que apresenta função para Elijah Price. E a única exceção positiva é James McAvoy, novamente habilidoso na composição física e emocional das diferentes personalidades encenadas (algumas já vistas, como o menino Hedwig e a elegante senhora Patricia, outras novas, como uma senhora espanhola e um erudito professor de cinema). O único problema de sua atuação não é sua responsabilidade: o roteiro o deixa muito tempo como a Besta, tendo apenas que rosnar como um animal, ou exige que ele apresente cada nova personalidade dizendo seu nome.

Vidro” não é a conclusão merecida para a trilogia dos super-heróis de Shyamalan. Pode não ser um filme ruim, mas está distante da coesão narrativa e temática dos seus antecessores. A irregularidade do desfecho indica como o esforço do cineasta em provar sua autoralidade causa prejuízos à sua própria carreira e aos seus gostos pessoais (afinal, até mesmo os comentários finais sobre a arte dos quadrinhos de heróis soam bobas e pouco criativas). O rico universo construído pelo cineasta bastaria em si mesmo, sem precisar ser usado como ferramenta de exaltação do criador.