“SOBREVIVENTES” – Entre a fome e a ordem
Quando um filme decide encarar de frente questões como colonialismo, escravidão e a luta por poder em condições extremas, espera-se que ele mergulhe nessas camadas com profundidade e sensibilidade. SOBREVIVENTES parte de um cenário carregado de tensão e simbologia, mas apesar de sua proposta ambiciosa, não consegue sustentar o impacto emocional e moral que almeja. O resultado é um filme visualmente elegante e ideologicamente consciente, mas que permanece à distância, observando mais do que sentindo.
A narrativa se passa em meados do século dezenove, quando um grupo de sobreviventes — negros e brancos — é lançado em uma ilha deserta no meio do Atlântico após o naufrágio de um navio negreiro. Isolados de qualquer traço de civilização, eles se veem forçados a lidar não apenas com a escassez de comida, água e abrigo, mas também com os escombros simbólicos de uma ordem social brutal que, mesmo diante do colapso, insiste em sobreviver. A convivência forçada e as circunstâncias extremas colocam em xeque antigas hierarquias, enquanto novos arranjos de poder emergem de forma instável. A ilha se transforma em um palco em que se reencenam, com crueza e urgência, os fantasmas da dominação, da resistência e da luta por resistência.

Dirigido por José Barahona, o filme opta por uma estética em preto e branco que, apesar de visualmente refinada, acaba reforçando uma frieza que enfraquece o impacto dos conflitos retratados. A fotografia aposta em composições contemplativas e um tom austero, que mais distancia do que aproxima o espectador das dores vividas ali. Em vez de traduzir a urgência da sobrevivência e o embate visceral entre os personagens, a imagem parece estéril, como se tratasse de um estudo acadêmico sobre dominação e resistência, e não de uma vivência marcada pela carne e pelo desespero.
O elenco entrega personagens que carregam intenções claras, mas raramente complexas. Miguel Damião interpreta Fradique Mendes, figura racional e observadora, que tenta decifrar os acontecimentos em meio ao caos. Allex Miranda vive João Salvador, símbolo de resistência e insubordinação, enquanto Anabela Moreira encarna D. Emília, personagem ambígua entre o cuidado e a condescendência. Roberto Bomtempo interpreta Gregório, o resquício brutal da autoridade branca. São figuras que funcionam bem como arquétipos — o opressor, o redimido, o revoltado —, mas que não ganham camadas suficientes para se tornarem humanos de verdade. O problema não é a existência dos arquétipos, e sim o modo como o roteiro os mantém presos a uma representação superficial.
O ritmo narrativo contribui para essa sensação de distanciamento. A direção escolhe silêncios longos, pausas que sugerem tensão, mas que frequentemente não encontram respaldo dramático. Há momentos em que a narrativa parece à beira de explodir em conflito, mas o filme opta por recuar, prolongando a ambiguidade — uma escolha que poderia ser poderosa, não fosse a base emocional tão irregular. A ambiguidade, nesse caso, mais confunde que instiga. A expectativa por um embate real entre passado e presente, entre dominação e liberdade, vai se dissipando à medida que o filme prefere a sugestão à entrega.
Ainda assim, há méritos na proposta. A ilha funciona como metáfora de um mundo que precisa ser refeito, e há momentos em que essa alegoria emerge com força. A escassez de recursos e a presença do “outro” obrigam os personagens a reavaliar suas posições, mesmo que essas transformações, no filme, aconteçam de maneira quase esquemática. O longa parece interessado em demonstrar ideias — e não em encarná-las. As reflexões sobre poder, culpa e liberdade são expostas com clareza, mas raramente com profundidade.
Ao final, “Sobreviventes” deixa a sensação de ser um projeto mais eficaz em conceito do que em realização. Seu discurso é relevante, sua ambientação é promissora, e a intenção de provocar incômodo é legítima. No entanto, falta calor, falta conflito que realmente transborde, falta uma entrega que vá além do simbólico. É um filme que sabe o que quer dizer, mas que hesita no modo de dizer — e, por isso, termina menos como um grito e mais como um sussurro indeciso diante de tudo o que poderia ter sido.

Um verdadeiro apaixonado pelo cinema, que encontrou nas palavras a maneira ideal de expressar as emoções e reflexões que cada filme desperta.