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“KARATÊ KID: A HORA DA VERDADE (1984) – Mentor e aprendiz

Mestre Yoda e Luke Skywalker, Mestre Splinter e as Tartarugas Ninja, Gandalf e os hobbits, Dumbledore e Harry Potter são alguns exemplos de mentores e aprendizes no cinema. Nessa lista, o Mestre Miyagi e Daniel Larusso não podem faltar. A relação entre os dois personagens iniciada em KARATÊ KID: A HORA DA VERDADE extrapola a mentoria e o aprendizado para criar outras possibilidades, todas marcantes para o cinema hollywoodiano da década de 1980. E o primeiro filme da franquia consegue estabelecer uma dupla icônica em função de uma série de acertos.

(© Sony Pictures / Divulgação)

Daniel Larusso e sua mãe se mudaram de Nova Jersey para a Califórnia. Ele tem dificuldade para se adaptar a nova cidade até conhecer e se apaixonar por Ali Mills. O romance tem como barreira Johnny Lawrance, o ex-namorado de Ali, que passa a atormentar o protagonista com sua gangue. Em certo dia, é salvo de uma briga pelo senhor Miyagi, um senhor que trabalha no prédio onde Daniel vive. Para se proteger, o jovem passa a treinar caratê com o senhor Miyagi. O treinamento culmina na participação em um torneio regional da modalidade, que leva a um confronto contra Johnny.

O diretor John G. Avildsen cria uma história simples e eficiente que valoriza a dupla central. Os arquétipos e a estrutura narrativa típicos das produções comerciais de Hollywood cumprem seus papeis, mostrando que padrões não são, necessariamente, prejudiciais. O protagonista recém-chegado a uma cidade que não o recebe bem e a jornada do herói com etapas que geram sua transformação não são construções inéditas, porém a forma como são usadas é mais importante do que uma suposta originalidade. E a trama que acompanha a entrada de Daniel Larusso no mundo do caratê e os conflitos com a gangue de Johnny tem uma energia autêntica capaz de divertir os espectadores. É o que acontece, principalmente, com a jornada do herói e os passos que incluem a transformação de um protagonista colocado em um ambiente desconfortável a partir da superação de desafios, do enfrentamento de inimigos, da formação de alianças, das contribuições de um mentor e da conquista material ou simbólica de objetivos importantes ao fim da travessia. O ciclo percorrido pelo filme significa também atravessar momentos de comédia, romance, drama e ação, sensações diferentes que acompanham as aventuras em Califórnia.

A formação da dupla marcante se inicia com a caracterização de Daniel Larusso. Ele é beneficiado pela presença carismática de Ralph Macchio, ator que teve sua carreira identificada com o jovem praticante do caratê que rivaliza com Johnny. Não é incomum observar reações negativas de parte do público que não gosta de personagens que reclamam muito e sempre parecem insatisfeitos com um cenário diferente da sua vontade. A irritação não acontece com ele, pois é fácil se importar com os humilhados e perseguidos pelos antagonistas. Além disso, não pode ser resumido a alguém passivo que não resiste às provocações e agressões de seus adversários ou deixa de fazer o que deseja por medo ou preocupações exageradas. Daniel joga água em Johnny na festa à fantasia do colégio, mesmo sabendo que isso significa ser outra vez agredido covardemente por seus inimigos. E, acima de tudo, toma a iniciativa para se aproximar e demonstrar seu interesse por Ali ao invés de se esconder por vergonha ou insegurança. O romance entre eles, inclusive, é outro elemento que fortalece o protagonista e desperta a simpatia dos espectadores para a obra como um todo.

Não seria possível falar em mentor e aprendiz se o mestre fosse apagado. Nesse sentido, Miyagi é uma das referências cinematográficas para essa figura ao ajudar a compor visual e narrativamente o que se espera dela. Pat Morita explora diferentes nuances do personagem, a começar pela imagem do velho sábio que serviu de base para outras produções. A postura tranquila, equilibrada e inteligente de quem sempre tem uma lição a transmitir contribui para apresentá-lo como uma inspiração para Daniel. Em outras passagens, Miyagi possibilita cenas de humor eficientes, sobretudo quando exibe uma serenidade inesperada em face da ansiedade de seu aluno para aprender caratê, como nas aulas sobre equilíbrio. Ele ainda possui momentos dramáticos importantes para dar informações adicionais ao passado do mestre, notadamente a dor da perda trágica de sua esposa e filha. A importância do mentor é tão grande que ele protagoniza sequências de ação que são gravadas na memória do filme e do cinema estadunidense comercial do período, por exemplo quando salva Daniel de uma briga injusta.

Aproveitando-se da descrição do sábio para Miyagi, John G. Avildsen trabalha uma simbologia muito clara ao longo da narrativa. Embora não seja uma discussão temática complexa, ela possui uma relação orgânica com a proposta da trama e é explorada de maneiras variadas, o que mostram uma eficiência na simplicidade. O cineasta, primeiramente, mobiliza as diferentes mentalidades de Miyagi-do e Cobra Kai para simbolizarem visões de mundo antagônicas. Na primeira escola de caratê e de pensamento, a ideia de equilíbrio é fundamental, bem como a tese de que se deve treinar para não ter que lutar. Na outra, o método do punho leva a repetição da frase “Sem compaixão!”. As diferenças podem ser ampliadas para o modo como os personagens se tratam e se relacionam. Ao passo que os discípulos de John Kreese são influenciados negativamente e se impõe através da violência e da intolerância, Daniel Larusso mantém relacionamentos sadios (ainda que não sejam imunes a desentendimentos e contradições naturais) com a mãe, a namorada e o senhor Miyagi de forma a evidenciar que ele está sempre aprendendo algo novo.

Os aprendizados não parecem se esgotar para o protagonista e podem vir nas mais diferentes ocasiões. O arco dramático de Daniel Larusso inclui a incorporação constante de conhecimentos, experiências e repertórios para a vida que vão além do esporte. Antes do treinamento para enfrentar Johnny e sua turma, o convívio com Miyagi já significa aprender a fazer algo ou ter outra percepção sobre o mundo. Aparar os bonsai ajuda a desenvolver equilíbrio, concentração e sensibilidade. Os mesmos valores são conquistados quando encera o chão e pinta a cerca ou a casa de seu professor. Nos momentos em que precisam ir a algum lugar, é o jovem que dirige o carro e desenvolve outro tipo de habilidade. Se Daniel vive alguns dilemas, como aqueles que marcam o romance com Ali, recebe conselhos do homem mais velho. À medida que a relação entre os dois se aprofunda, revelam não ser apenas mentor e aprendiz, mas também se assemelham a amigos e pai filho. A segunda possibilidade é verbalizada pelo jovem que comenta considerar Miyagi seu melhor amigo, já a última aparece simbólica quando a figura paterna se estabelece em momentos simples, como o carro dado como presente de aniversário.

Karatê Kid: a hora da verdade” possui ainda momentos e imagens muito marcantes para descrever a década de 1980 no cinema comercial estadunidense. A montagem em paralelo do encontro de Daniel e Ali ou do treinamento do adolescente cumpre muito bem o papel de dar dinamismo à passagem do tempo ou às emoções contidas naquelas ações. A trilha sonora composta, por exemplo, por “Glory of love” de Peter Cetera retrata a ambientação daqueles anos e o caráter emocional da trama. Em paralelo a essas construções visuais ou sonoras, John G. Avildsen também explora a força de determinadas cenas para torná-las icônicas e facilmente lembradas. São os casos, por exemplo, da descoberta dos golpes defensivos por parte de Daniel com os movimentos de pintar e acerar objetos comuns e do golpe da garça dado por ele contra Johnny. Cada elemento citado permite que Daniel Larusso e senhor Miyagi se afirmem como uma dupla icônica de mentor e aprendiz que repercutiu junto ao público que cresceu com a história no avanço da franquia e novas gerações que acompanharam outros produtos decorrentes do original.