“A CONVERSAÇÃO” – Vulnerabilidade vigilante em sons
O voyeurismo é uma característica estruturante do cinema. O prazer de observar algo ou alguém sem ser visto faz parte da relação do espectador com qualquer filme e pode ser tematizado por algumas obras. No caso de A CONVERSAÇÃO, as semelhanças com “Blow-up: Depois daquele beijo” de Michelangelo Antonioni e “Um tiro na noite” de Brian de Palma são inevitáveis. A captura de um instante por uma gravação sonora ou uma fotografia podem desencadear um mistério devido às propriedades do registro. Somado a isso, o clássico de Francis Ford Coppola também incorpora os riscos da interiorização de práticas de controle no estudo da psique do protagonista.
Harry Caul é um dos melhores quando se trata de sistemas de vigilância, conhecido nacionalmente por sua presteza na profissão. Ele é contratado pelo diretor de uma grande empresa para vigiar e gravar as conversas entre dois amantes. Diferentemente dos outros trabalhos, este em específico traz à tona memórias do passado e consequências de outros serviços que realizou. Então, enquanto a sensação de que algo trágico pode ocorrer, Harry passa a ser importunado por uma série de conflitos internos.
Francis Ford Coppola e Walter Murch fazem a sequência de abertura ser reveladora do filme como um todo. O diretor e o montador trabalham a decupagem da gravação de Mark e Ann dando atenção especial ao desenho de som e à composição visual dos planos. Assim, o que se pode enxergar e, sobretudo, escutar através da transição de planos gerais da praça e fechados nos transeuntes e da mescla de ruídos diegéticos no local dá o tom da encenação. O momento inicial igualmente contribuiu para destacar o complexo trabalho de Harry, que precisa captar uma conversa em um ambiente aberto repleto de pessoas e sons diversos da forma mais limpa possível sem despertar suspeitas. Levando em conta a dinâmica de abertura, sobressai o caráter profissional do personagem na escolha de como usar o equipamento e na declaração de que se interessa apenas pela gravação perfeita.
A construção sonora do filme surge, então, como indicativo do trabalho desafiador para a equipe de Harry. Os efeitos sonoros captam a confusão de diálogos, músicas e outros fragmentos de uma praça em horário de grande circulação. A partir daí, a captura de uma conversa entrecortada se torna um enigma para o próprio profissional, intensificado pela postura misteriosa de Martin Stett ao querer receber a gravação imediatamente e adverti-lo do perigo que pode correr se quiser se envolver na questão. Se antes os sons gravados atendiam ao serviço profissional e distanciado que Harry deveria cumprir, passam rapidamente a serem pistas de um mistério sobre um provável crime no futuro que ele quer desvendar. Logo, o áudio é colocado em repetição constante para que ele tente decifrar o que escuta, cortar as interferências, encontrar a melhor sintonia e interpretar as emoções de quem fala. A investigação ocupa tanto espaço em sua vida que o diálogo gravado passa a ser reproduzido em sua mente em qualquer ocasião como uma assombração a persegui-lo.
Escapar da repetição inconsciente do mesmo áudio não parece viável, sendo assim, Harry começa a ter outra relação com os sons registrados e sua profissão. Uma simples atividade profissional e um mistério a ser solucionado se transformam em tormentos emocionais que invadem sua subjetividade e resgatam sensações dolorosas do passado. Ele é atormentado pela conversa de Mark e Ann que o relembra de que seu trabalho pode ter provocado as mortes de várias pessoas e ainda pode provocar outras. O medo é tamanho que ouve a mesma gravação enquanto se relaciona com uma mulher e sonha. Nessas cenas, é possível identificar mais algumas pistas de quem é Harry Caul, um sujeito que protege sua intimidade de todos ao rejeitar perguntas sobre ele, ter um apartamento pouquíssimo mobiliado, afirmar que não tem telefone em casa embora tenha e se ocultar em torno do próprio sistema de monitoramento. Apesar dos esforços, ele não consegue se proteger completamente, já alguém entra em seu apartamento, descobre o número de seu telefone e grampeia uma conversa íntima.
Gene Hackman é outra peça chave para a criação de um personagem que suscita curiosidades, embora pouco revele sobre si e controle os sentimentos. O ator demonstra com eficiência a paixão do homem pela música ao descansar à noite tocando saxofone, a austeridade na relação com uma “namorada” ocasional e a culpa católica traduzida pela inquietação de ser punido por Deus ao se confessar e criticar quem pragueja usando o nome de Deus em vão. Nesse sentido, por mais que tente ser vigilante para se manter seguro, o homem se sente observado, seguido e ameaçado. Tais sensações seriam atribuídas à primeira vista ao possível crime relacionado à gravação, como fica claro na paranoia de ser perseguido no prédio do contratante através da trilha sonora e da claustrofobia do enquadramento do elevador. Porém, outros indícios revelam que o observador pode estar sendo metaforicamente observado: o mímico que o segue na praça, o confessionário que se assemelha a um aparelho de vigilância e a movimentação da câmera em seu apartamento que lembra a filmagem de um sistema de segurança de empresas.
A resolução do mistério acerca de um crime futuro e a evolução dramática do protagonista caminham em direção a um desfecho desagradável para ambos os núcleos. A sequência em Harry se hospeda em um hotel para investigar o que pode acontecer e as respostas obtidas é a primeira conclusão proposta pela obra. Uma parte dos espectadores interessados na elucidação do enigma em torno do significado da gravação é satisfeito, pois Francis F. Coppola responde ao anseio com uma construção típica do thriller, isto é a preparação do cenário, a criação de expectativas, a chegada do clímax e a descoberta de uma reviravolta. Ao mesmo tempo, o cineasta concebe cada cena como a deterioração da estabilidade emocional do protagonista por se ver angustiado pelos receios da violência a ser testemunhada e pela rememoração de responsabilidades passadas. A instabilidade é tão grande que os medos invadem sua subjetividade e se torna vulnerável a uma série de eventos ou sensações que não pode dizer se seriam reais ou não, traduzidos pelos ruídos e pelas imagens dignas de uma história de terror.
Na sequência final, a solução do mistério não é mais o foco. A reviravolta citada até pode tê-lo encerrado, mas Francis F. Coppola parece menos interessado em dar uma resposta definitiva. Isso porque o crime enfim descoberto apresenta uma ambiguidade na intenção e na execução que se mantém até o fim. O diretor, portanto, desloca o interesse da narrativa para o estado de espírito de Harry quando se sentia recuperando o controle sobre sua segurança. Na última cena, ele recebe uma ligação, sente-se vigiado e intimidado, a paranoia retorna e busca por todo o local a fonte daquela ameaça. A reação demonstra a perda de lucidez e de equilíbrio psicológico de alguém considerado especialista em vigilância. Quem antes seria o voyeur que observa ou escuta, passa a ser o alvo do voyeurismo. Mas, quem o estaria observando ou escutando? Talvez ele mesmo sob a forma da culpa católica ou de uma visão subjetiva e imaginária do que estaria acontecendo com ele? Talvez o próprio espectador que esquadrinha o personagem a partir do olhar da câmera que tudo vê?
Um resultado de todos os filmes que já viu.