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“A FERA” – Perigo maior que o leão

Chega a ser engraçado perceber que a maior qualidade de A FERA seja a sua curta duração (cerca de noventa minutos). Apesar disso, a experiência de assistir ao longa não é rápida como deveria e reforça a impressão apriorística deixada pelo seu próprio título. Concluir o título genérico da obra (“Beast”, no original) como reflexo da sua má qualidade poderia ser um mero pré-conceito; nesse caso, todavia, é a confirmação de uma probabilidade anunciada, um perigo assumido e concretizado.

Nate perdeu a esposa recentemente e decide levar as filhas adolescentes para visitar a região onde eles se conheceram, na África do Sul. Um passeio em um safári se torna um pesadelo quando a família se torna alvo de um leão agressivo.

(© Universal Studios / Divulgação)

Na verdade o leão do filme, feito em um CGI, no máximo, aceitável, é um super-leão imune a quaisquer ataques, inteligência quase humana e com instinto assassino não compreendido pelos próprios especialistas da trama. A suspensão da descrença pode explicar a resistência do animal e sua eficiência nos ataques, mas não explica a estupidez humana em decisões como as de se afastar dos demais para bancar o herói (ou a heroína) sem o armamento adequado. É verdade que, em filmes similares, essa estupidez é quase um quesito obrigatório, mas “A fera” está mais próximo de “Anaconda” e “Pânico no lago” do que de “Tubarão” ou “Jurassic Park” (que é referenciado na roupa de uma personagem).

Isso porque, em primeiro lugar, o roteiro de Ryan Engle e Jaime Primak Sullivan é absolutamente incapaz de criar uma narrativa com virtudes particulares – salvo, talvez, a solução final, que é risível por ser pouco crível e se torna ainda mais risível pela explicação verbal de uma personagem. Na ótica do diretor Baltasar Kormákur, das duas, uma: ou o público é idiota o suficiente para não entender o desfecho (o que justificaria a sua explicação), ou é idiota o suficiente para aceitar a explicação. O trio então elabora diálogos repetidos e que caem em um vazio, movimentando a narrativa ao revisitar o passado parcialmente traumático ou para solucionar o presente periclitante, isso quando não se aventura em um discurso raso sobre natureza, lei da selva, caça ilegal etc.

Certamente as personagens de “A fera” não representam virtudes particulares – aliás, sequer o leão consegue ser memorável. Não é possível afirmar que são personagens arquetípicas, pois o desenvolvimento das suas personalidades não alcança tal nível. Já é sabido que Idris Elba é um ótimo ator que não escolhe bem muitos dos projetos dos quais participa, dessa vez sua interpretação alcança o nível máximo que o roteiro permite. Ou seja, Nate é um homem que se culpa pela morte da esposa e que se esforça para melhorar o relacionamento com a filha mais velha – nada mais. Seu conhecimento profissional como médico serve mais como engrenagem de roteiro (para tirá-lo do veículo em que está e atender uma pessoa ferida, por exemplo) do que para agregar na constituição da personagem. Iyana Halley e Leah Jeffries, por sua vez, são limitadas ao perfil das filhas rebelde e frágil, respectivamente, do protagonista, algo já visto milhares de vezes no cinema. O amigo de Nate, Martin, poderia ser melhor utilizado, como quando é questionada a sua ética no combate à caça ilegal, mas a ideia não é aprofundada. Entretanto, mesmo se houvesse o aprofundamento o resultado deixaria a desejar, dada a atuação pavorosa de Sharlto Copley, mais assustador que o leão com um trabalho tão ruim (sua perplexidade ao encontrar as primeiras vítimas do animal é verdadeiramente cômica).

Apesar das diversas falhas, nem tudo é ruim em “A fera”. Além de uma trilha musical que combina com a atmosfera ao usar ritmos instrumentais africanos embalados por forte percussão, sua estética é bastante razoável. A caracterização imagética parece camuflar as personagens na savana, como na casa de Martin, de paredes esverdeadas e muitas plantas, e o figurino, com prevalência de tons verdes e azulados. O design de produção limita as cores rubras para o sangue das vítimas do leão, o que dá maior destaque aos seus ataques e enfatizam a sua violência – que, todavia, poderia ser muito mais chocante. É positivo que a filmagem não se reduza a planos noturnos e algumas cenas demonstram boas escolhas, como a que o grupo está dentro do jipe sendo atacado, enquanto a câmera mantém a filmagem dentro do veículo. Surpreende o uso comedidíssimo de jump scares (na verdade, apenas um), mas a opção traduz a timidez do diretor em tornar gráfico o perigo do felino.

É essa, inclusive, a grande falha do filme, representada de duas formas. Na primeira, está a inabilidade de criar um suspense verdadeiro, pois o leão está constantemente visível e sempre disposto a atacar, sem nuances capazes de criar a necessária tensão (a única cena em que essa tensão aparece é aquela em que o rádio comunicador de Nate quase revela ao animal que o humano está próximo). Na segunda, está a sua previsibilidade, sobretudo resultante da falta de personagens descartáveis que possam morrer e, assim, aumentar a sensação de perigo. Como resultado, não apenas o título do filme cairá facilmente no esquecimento, mas também o seu próprio conteúdo. Em se tratando de uma obra de caráter artístico, esse perigo é maior que aquele representado pelo leão.