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“A FITA BRANCA” – O mal radical

No século XVIII, Immanuel Kant criou a expressão “mal radical”, que seria a maldade enraizada no indivíduo, entendida por Hannah Arendt – esta, filósofa do século XX – como o mal extremo. Os escritos de Kant e Arendt foram, respectivamente, bem anteriores e pouco posteriores ao nazifascismo, ideologia que é hoje compreendida como a síntese desse mal. Com A FITA BRANCA, o que se tem é uma alegoria sobre a gênese do nazifascismo como um mal banal.

O filme se passa em 1913, em um vilarejo no norte da Alemanha. O local é pacato, mas sua tranquilidade se esvai quando ocorre um acidente com o médico da vila, que cai de seu cavalo quando este tropeça em um arame. Inicia-se então uma busca pelo responsável, porém novos acontecimentos estranhos instauram um clima de preocupação e instabilidade na população.

(© IMOVISION / Divulgação)

A genialidade de Michael Haneke, presente em outras de suas obras, ganha tons ainda mais requintados com “A fita branca”. Ao contrário, por exemplo, de “Violência gratuita”, o cineasta não utiliza uma violência gráfica, mas verbal: ao invés de mostrar o pastor punindo seus filhos, exibe o médico humilhando a Sra. Wagner com palavras extremamente dolorosas. Diversamente de “A professora de piano”, a libido não surge de maneira romântica, mas censurada (o pastor em relação ao filho Martin) ou trivial (novamente o médico no diálogo mencionado). Haneke não quer comover o público com a devoção de “Amor”, mas causar perplexidade na plateia.

O trato das crianças é cruel, iniciando uma verdadeira espiral de perversidade. O vilarejo é terreno fértil para opressão e autoritarismo, justificando punições severas que até mesmo ricocheteiam em outras pessoas (como quando o pastor decide que todos ficarão sem jantar). A baronesa demora para descobrir que está em um local “de apatia e inveja”, percebendo um firme aparato de poder centralizado em dois eixos, geracional e de gênero. As crianças não podem agir como crianças; a fita branca do título é símbolo de pureza e inocência, virtudes que paradoxalmente não têm o estímulo dos adultos, sobretudo pela associação da fita a uma reprimenda decorrente de mau comportamento. Quando o filho do pastor leva o pássaro para o pai, a comoção é visivelmente contida, pois não há espaço para bondade. A violência de gênero é dissimulada; está nas ações e nas palavras, não tanto na fisicalidade.

É com muita inteligência que o texto de Haneke abraça uma trama de mistério para abordar o seu tema. O autoritarismo está nas circunstâncias periféricas, que, todavia, acabam sendo centrais na proposta. O professor se torna uma espécie de Sherlock Holmes quase sem querer, o que reforça a ideia de que o enredo não é tudo no roteiro. Nessa lógica, o cineasta coloca o acidente de equitação do médico por mera narração voice over, porque o importante são as consequências desse gatilho inicial. Através de planos fechados, o diretor mostra a natureza das personagens – seja no semblante tímido de Eva ao conversar com o professor, seja na confiança de Klara ao ser interrogada por este.

Na bucólica fotografia em preto e branco, as cores não fazem falta alguma. Tratando-se de uma obra que se passa no pretérito, a fotografia, amplamente com iluminação natural, assume um tom poeticamente histórico-documental (ainda que não o seja o estilo do filme), como um relato fidedigno de eventos cuja veracidade não é certa. A ausência de cores não exerce diferença para que a fita branca no braço de Martin pareça uma suástica. Com a neve, o visual áspero da vila se torna ainda mais opressivo. A porta da casa da baronesa aparece sem que a câmera se movimente por longos segundos, como se fosse um portal para a maldade que ela reconhecidamente condena. Na sequência em que Klara e Martin serão submetidos ao castigo corporal, o travelling pelo corredor reforça a atmosfera opressiva e claustrofóbica. Gritos são ouvidos ao longe, onde está o mal.

O mal que justifica os atos investigados pelo professor não tem uma justificativa óbvia, pois decorre de um efeito em cascata que gera uma espiral de ódio. É um ódio que não nasce com a pessoa, mas se desenvolve nela infinitamente, em um ciclo que – e eis o que o filme pretende dizer – desemboca em terrorismo, crimes de ódio e discriminação. Para que a espiral não continue se desenvolvendo, é preciso enxergá-la e extrair o mal em sua raiz.