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“A MATRIARCA” – A literalidade e o simbolismo do zimbro

Há um duplo significado no título original de A MATRIARCA, “Juniper” (traduzido para o português, é o zimbro, uma planta). Na Grécia Antiga, os troncos de juníperos eram queimados como incenso enquanto oferendas a Hades, razão pela qual existe uma antiga associação da planta à morte. O zimbro é também um dos ingredientes do gim, bebida preferida da personagem que dá nome ao título nacional do longa. O filme, de fato, transita entre o simbólico e o literal.

Sam é um adolescente problemático que vai passar um tempo cuidando de sua avó, Ruth, a pedido de seu pai, Robert. Ruth, porém, não é uma pessoa fácil de lidar, o que causa ainda mais revolta no jovem. Aos poucos, ambos passam a compreender as dores que cada um compartilha.

(© Divulgação / Pandora Filmes)

Do ponto de vista estrutural, é fácil perceber que o longa dirigido e roteirizado por Matthew J. Saville é deveras engessado e, portanto, previsível. São três atos delineados da maneira mais clara possível: Sam e Ruth são apresentados e não gostam um do outro; neto e avó progressivamente se afeiçoam; há um desfecho para cada um representando suas transformações. Na primeira etapa, o desgosto é mútuo, inclusive com o compartilhamento de uma infantilidade aparentemente hereditária (ele, ao se negar a falar com ela; e ela, com a campainha). Na segunda, quanto mais se conhecem, mais se compadecem reciprocamente – sem deixar de lado a aspereza, é verdade -, pois ambos têm traumas que funcionam como fantasmas que os assombram. A metáfora, aliás, é pertinente, dado que a morte lhes é particularmente dolorosa. No terceiro ato, um plot point de ápice é seguido de uma crise que encaminha o desfecho.

A importância dada a Robert (Marton Csokas) mais ao final, embora saia um pouco da linha normal dos acontecimentos, acaba sendo ruim para a trama na medida em que a personagem é muito mal trabalhada, com uma aparente mudança de pensamento que não se justifica de modo convincente. É interessante, por outro lado, que ele faça parte dos fragmentos que compõem a narrativa, pois há muito que não é mostrado e fica subentendido, ou que é explicado a posteriori, como o que aconteceu com a mãe de Sam, com Robert após isso e com Ruth enquanto fotógrafa. Diferentemente de Robert, Sarah (Edith Poor), a quarta integrante com alguma relevância no elenco, não chega a ser propriamente uma personagem, suprindo bem eventuais necessidades narrativas (a aproximação forçosa entre Ruth e Sam, o momento cômico do flagra etc.).

Ruth é uma personagem deveras interessante cuja complexidade não poderia ser melhor explorada pela formidável Charlotte Rampling. A atriz não se dispõe a simplesmente transformar Ruth de uma “velha ranzinza” (palavras de Sam) a uma avó carinhosa, pois seu amargor, além de alimentado pelas doses cavalares de gim que toma todos os dias, já faz parte da sua personalidade. Há uma mudança não no significante, mas no significado do que é dito – por exemplo, seu palavreado chulo é geralmente mantido, porém o sentido atribuído é outro. Não seria correto afirmar, contudo, que não há transformação alguma, já que as agressões físicas deixam de existir e há uma evidente mudança de ares. Não é à toa que a direção faz uma contraposição entre, de um lado, os cenários fechados no início, como que em uma clausura (os quartos de Sam e de Ruth), com pouca iluminação e design de produção com cores tristes (sequer o verde abacate das paredes e da roupa de cama do quarto de Ruth transmitem sensações de alegria), além de planos fechados, e, de outro, o oposto de tudo isso posteriormente, exibindo planos gerais da bela fazenda ou, no mínimo, filmando as personagens na varanda da casa. Ruth não vai abandonar o gim, já que os horrores das mortes que presenciou em seu passado não vão abandoná-la. Todavia, de alguma forma, ela melhora com Sam.

Também Sam (George Ferrier) melhora com Ruth à medida que ambos enxergam o quanto de si compartilham, além de herança genética: a sensação de abandono familiar, a angústia de viver, a teimosia inquebrantável, a rebeldia inata, a sexualidade frustrada e, claro, o fantasma da morte. A convergência ocorre quando deduzem que, apesar de diferentes, não são tão diferentes quanto inicialmente pensavam. Evidentemente, Ruth é uma personagem mais intrigante, já que suas experiências de vida são mais extensas, mas Sam não é meramente um rebelde sem causa. Sua insurgência não é contumaz à toa, e igualmente contumaz é o seu ímpeto no que faz, seja no enfrentamento a uma idosa agressiva, seja na manifestação do inconformismo com uma situação revoltante. Ruth é apaixonada pelo nascer do sol porque a hipótese de um recomeço, mesmo teórica, é um alento. Para ela, trata-se de uma metáfora. Já para Sam, há tempo vasto, literalmente, para diversos recomeços.