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“A MÉDIUM” – A possessão do registro fílmico

Filmes de terror de possessão demoníaca já foram feitos aos montes, desde o icônico “O exorcista“, de 1973 (clique aqui para ler a nossa crítica), até o independente “Possessão” de 1981. Filmes de terror no estilo mockumentary também já foram lançados em bom número, como “A bruxa de Blair” e “[REC]“. Então, o que poderia ser diferente e original em uma produção que combina a temática da possessão e a abordagem do falso documentário? A MÉDIUM propõe uma visão específica do efeito de realismo no cinema a partir da dimensão mística de crenças religiosas orientais.

(© Paris Filmes / Divulgação)

O pseudodocumentário fica evidenciado com a viagem de uma fictícia equipe de documentaristas para o nordeste da Tailândia para filmar o cotidiano de Nim, uma médium local. Ela é possuída pelo espírito de Bayan, uma divindade ancestral local que é adorada pelos aldeões e possui as mulheres da família de Nim por gerações. Enquanto as filmagens são realizadas, sua sobrinha Mink começa a ter comportamentos estranhos. Noi, a mãe da jovem, acredita que Bayan está tentando possuí-la e pede a sua irmã que faça uma Cerimônia de Aceitação para amenizar os sofrimentos da filha. Porém, Nim não está convencida dessa explicação e acredita que espíritos maléficos possam estar se apoderando do corpo da sobrinha.

Inicialmente, a narrativa criada pelo diretor Banjong Pisanthanakun se adequa mais à estética do falso documentário do que ao terror propriamente. As primeiras sequências se desenvolvem dentro das tradições documentais mais clássicas, seguindo certo didatismo na contextualização daquele universo e um tom observacional na construção dos planos. Nim começa como uma protagonista que explica as crenças locais sobre os espíritos, a importância da divindade Bayan para a comunidade e as concepções místicas quanto à existência de almas em objetos (casas) e elementos da natureza (floresta e campos de arroz). Além disso, ela também informa sobre as características de sua família, especialmente as mortes trágicas de vários parentes masculinos, seu próprio processo de aceitação de Bayan e a recusa da irmã em se tornar uma médium ao preferir a conversão para o cristianismo. Os documentaristas observam o relato de Nim e seu dia a dia, recebendo moradores da região para tratar enfermidades espirituais, dar bênçãos e receber oferendas.

Nesse primeiro momento, as marcas visuais de um documentários são explícitas e tradicionais. A narração em voice over de Nim atrai os personagens documentaristas e espectadores para o interior do universo diegético a ponto de começar a conhecer suas regras e lógicas. Em cada sucessão de fade-out e fade-in, cartelas aparecem para informar a situação da equipe de filmagem ao longo do processo, indicando as escolhas que fazem e sua dinâmica com as figuras filmadas. As entrevistas são registradas de maneira clássica, colocando o entrevistado no centro do quadro e deixando o entrevistador no extracampo (no máximo, algumas perguntas pontuais são feitas para orientar os testemunhos). E a decupagem alterna entre os closes e planos mais abertos de observação dos personagens, quase sempre tentando emular um caráter de objetividade da câmera. O único aspecto mais livre é a movimentação fluida da câmera pela natureza ao redor, como se o próprio filme demonstrasse a fala de Nim a respeito da existência de espíritos nos elementos da paisagem natural.

A partir de certo instante do mockumentary, há uma ruptura proposital do ponto de vista da narrativa. Ainda que fosse secundária nas filmagens, Mink é observada e registrada pelos documentaristas em função das mudanças inesperadas de comportamento. A jovem dá sinais de que algo está errado em sua personalidade e em seu corpo, inclusive podendo ter causas sobrenaturais. Ela se torna mais silenciosa, encara obcecadamente lugares vazios como se pudesse enxergar algo que os outros não veriam, altera radicalmente suas atitudes de uma postura infantilizada para reações violentas. Se antes os espectadores pudessem ser atraídos por razões antropológicas ou sociológicas para compreender costumes culturais diferentes das tradições ocidentais, o arco de Mink captura a atenção por conta do mistério de tentar desvendar os motivos para a transformação radical da personagem. Algumas cenas são paradigmáticas para simbolizar essas alterações drásticas, como aquelas que a mostram empurrando crianças em um brinquedo infantil, atirando flechas em um evento de rua, discutindo com estranhos e sofrendo com sangramentos misteriosos.

Quando o tom da trama se transforma, as abordagens visuais da câmera acompanha a transformação. A encenação mais observacional ainda existe, mas outras possibilidades estéticas são criadas por Banjong Pisanthanakun como se a própria câmera tivesse espíritos mutáveis. Isso se dá porque os documentaristas são paulatinamente jogados para dentro da trama como personagens, não mais ficando em uma posição distanciada e neutra. Por vezes, a equipe de filmagem tenta seguir os personagens, mas suas câmeras são barradas e eles são impedidos de entrar em um cômodo. Em outros momentos, alguns cameramen precisam deixar suas câmeras em um canto qualquer no chão para acudir Mink em situações de desespero e de dor. A composição das imagens também muda e incorpora a estética de registros de celular e de gravações de sistemas de segurança. E, até aquele instante da narrativa, a mudança mais radical do mockumentary é o uso da câmera de um dos documentaristas como arma para agredir um personagem. Assim, o efeito de realismo é redimensionado para não parecer apenas a captura fiel do mundo extradiegético com a sensação de serem “baseado em fatos reais”.

Conforme o tempo avança, a nova protagonista é Mink e os demais personagens se tornam coadjuvantes na tentativa de salvá-la da possessão espiritual. A partir daí, Banjong Pisanthanakun concretiza as convenções estéticas e dramáticas mais diretas dos filmes de espíritos, como já havia feito em “Espíritos – A morte está ao seu lado“, através de imagens violentas e perturbadoras que ocupam o foco da câmera. Nesse sentido, a atriz Narilya Gulmongkolpech tem um papel central no estabelecimento do gênero terror por conta de sua performance física, destacada pela maquiagem e pelos efeitos visuais, que evidencia a perda do controle de seu corpo a partir dos ferimentos, da expressão facial e dos olhares contaminados por alguma influência demoníaca. Então, existem sequências icônicas de possessão e de tentativas de exorcismo que dialogam com o subgênero, como aquela ocorrida no quarto da jovem envolvendo os tios e a mãe. Apesar do mérito do cineasta na construção do horror, o uso do falso documentário soa menos complexo em comparação com o que fazia então por imprimir reiteradamente uma estética próxima aos filmes “Atividade Paranormal“.

A médium” poderia correr o risco de se manter no terror mockumentary domesticado de uma fórmula segura, porém o clímax segue por outro rumo mais enriquecedor. Reviravoltas acontecem para impactar o público e reorientar o andamento da narrativa, a cerimônia para salvação de Mink envolve uma angustiante montagem paralela entre dois cenários distintos e o ritual degringola para situações inesperadamente devastadoras. Os momentos perturbadores se avolumam e Banjong Pisanthanakun não desvia sua câmera de mostrá-los e de encadeá-los em sequências cada vez mais tensas, por isso ataques brutais, exposição de sangue e de vísceras, gritos de grande desespero, tentativas angustiantes de fuga, mortes cruéis e descontrole enfurecido de indivíduos tomam conta da produção. Além disso, o cineasta novamente reinventa a utilização do falso documentário e das câmeras fictícias dos documentaristas, fazendo os cameramen se tornarem alvos que precisam fugir e as câmeras serem usadas pelos espíritos demoníacos. Não satisfeito com o choque visceral da violência do clímax, o filme coloca em xeque a ilusão de realismo do mockumentary ao mesmo tempo que expõe as crises de fé pelas quais passam a família de Nim. Assim, o terror está na insegurança que existe tanto no real quanto no místico.