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“A ÚLTIMA CARTA DE AMOR” – Desgosto tão forte quanto o charme

Há dois filmes dentro de A ÚLTIMA CARTA DE AMOR: um bem razoável, o outro, muito fraco. A subdivisão de uma história em dois tempos, cada um com sua protagonista, costuma ter como objetivo imprimir dinamicidade à trama, porém no filme a fragilidade da narrativa que ocorre no tempo presente prejudica demais o resultado final.

Londres, 1965: Jennifer Stirling volta para casa após passar um tempo no hospital em decorrência de um acidente que sofreu e que lhe causou perda de memória. Londres, dias de hoje: Ellie Haworth é uma jornalista que não tem interesse em um relacionamento estável. Jennifer e Ellie, cada uma em sua época, encontram uma carta romântica endereçada à primeira, o que se torna apenas o começo para uma ressignificação de suas vidas.

(© Netflix / Divulgação)

Tudo o que o filme tem de positivo está no pretérito diegético. No elenco, Shailene Woodley dá a Jennifer uma vividez que Felicity Jones não consegue emprestar a Ellie. Woodley torna natural a mudança do estado de espírito da personagem: na companhia de Lawrence (Joe Alwyn, indiferente), aparece apática e encolhida; na de Anthony, interpretado por um carismático e charmoso Callum Turner, seus olhos parecem brilhar. O trabalho da atriz é realmente muito bom. Diferentemente, Jones surge esbaforida e impessoal, não conseguindo traduzir o desinteresse pelo afeto em algo positivo. O que poderia ser uma personalidade contemporânea em Ellie se torna meramente um reflexo dos tempos – leia-se, do atual contexto em que a mulher não busca desenfreadamente um príncipe. Seria muito melhor se ela não tivesse com quem interagir, porque a participação de Rory (Nabhaan Rizwan, simpático, mas desimportante) é deplorável. O itinerário comédia-descoberta, além de clichê, desfaz o que se propôs como personalidade de Ellie. Ainda pior, Rory é tão descartável na narrativa que, em determinado momento, ele é, de fato, descartado (para voltar, nada triunfante, mais ao final).

Não se pode ignorar que a estética empregada pela diretora Augustine Frizzell acentua a discrepância das linhas narrativas. No pretérito, a iluminação com contraluz transmite uma sensação onírica, quase poética; ao passo que no presente não há nada capaz de minimamente encantar. O design de produção de época também colabora para a diferenciação. Imageticamente, Ellie está em um mundo comum; Jennifer, por outro lado, se apresenta com extrema elegância e em cenários belíssimos. Um primeiro beijo em um bosque certamente é mais idílico do que em uma rua qualquer com céu cinzento e chuva (que também pode ser romântico, mas não tem o mesmo lirismo); a aproximação de um casal na costa da Córsega é, igualmente, mais lírico do que em cenários fechados e escuros.

Jennifer usa um figurino garboso, seja pelos vestidos refinados, seja pelos acessórios sofisticados (lenço ou chapéu na cabeça, luvas, joias etc.). Isso poderia ser um elemento gráfico para auxiliar o distanciamento entre ela e Anthony, porém o casal encontra dificuldades para a união em outros fatores que não o abismo socioeconômico. Ela está acostumada com reuniões sociais frias, com pessoas se alimentando e conversando (conversas frívolas, é claro) distanciadas umas das outras. Não à toa, seu vestuário é geralmente de cores frias e claras (azul, branco). Esse ambiente não é do agrado de Anthony, que a leva a locais mais calorosos (com pessoas, de diferentes estilos, dançando músicas empolgantes) onde ela se sente tão confortável quanto ele. Quando eles alcançam o ápice da união, Jennifer se veste de roxo, representação simbólica do quão diferente ela é em sua companhia.

A música da época (Irma Thomas, Aretha Franklin etc.) torna a trama de Jennifer mais empolgante, da mesma forma que ocorre com a estrutura do roteiro escrito por Nick Payne e Esta Spalding a partir do livro de Jojo Moyes. A memória fragmentada da protagonista e a investigação de Ellie conseguem prender a atenção do espectador, porém o arco narrativo da jornalista parece poluir o da jovem apaixonada. A sensação é que, apenas com a trama de Jennifer, o texto não seria autossuficiente, criando então uma personagem meramente instrumental e fingindo que ela é um fim em si mesma. Ellie pode ter o propósito de desconstituir o emaranhado do arco narrativo de Jennifer e tem importância maior no terceiro ato, mas se não houvesse tentativas de dar-lhe espaço maior que o necessário o resultado seria muito melhor.

O erro de “A última carta de amor”, portanto, é dar atenção ao que não merecia atenção alguma. Rory poderia não existir, assim como os colegas de trabalho de Ellie. Isso daria mais tempo, inclusive, para desenvolver com mais vagar o romance entre Jennifer e Anthony, o que certamente seria benéfico para estimular o espectador a gostar mais do casal. Na prática, a infelicidade da jovem junto ao desgostoso marido é mola propulsora para a união com o charmoso Anthony tanto quanto o romance nascente entre os dois.