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“ADAM” – Delicado, discreto e doloroso

A realidade opressiva às mulheres nos países árabes não é novidade. O marroquino ADAM, contudo, consegue fazer um retrato delicado e discreto desse panorama, emocionando pelo senso humanista que possui, contando com basicamente três personagens.

Essas três personagens são Samia, Abla e Warda. Samia é uma jovem precisando de abrigo; Abla, uma comerciante local; e Warda é a filha de Abla, com apenas oito anos. A partir de um inesperado convívio, elas descobrem que a solidariedade e a ajuda mútua pode fazer a diferença em suas vidas.

Cartaz de “Adam

O trabalho de atuação das atrizes adultas é fenomenal. Samia (Nisrin Erradi) parece funcionar como protagonista da trama escrita e dirigida por Maryam Touzani, porém ela acaba se tornando o incidente incitante de Abla. Para evitar spoilers, a condição de Samia é de desespero, o que se percebe do prólogo, no qual ela se oferece de porta em porta para qualquer tipo de trabalho. Na primeira parte do longa, o que parece é que ela é bem emotiva (como na belíssima cena no banheiro com Warda), contudo essa imagem pode ser questionada a partir de suas decisões para o futuro.

Diversamente, Abla (Lubna Azabal) aparentemente é uma mulher fria como um cubo de gelo, quase indiferente à vulnerabilidade de Samia, ríspida no trato interpessoal até mesmo com quem é gentil com ela (no caso de Slimani) e incapaz de tratar a filha de maneira afetuosa (deixando-a sem resposta quando ela faz perguntas sobre maternidade). Contudo, novamente, o que parece não corresponde muito bem à realidade: Abla é uma mulher cujas feridas ainda não cicatrizaram, o que faz com que ela reaja com aspereza a tudo e a todos. O que ela quer, na verdade, é negar a si mesma a alegria, fugindo de todos os riscos que possam proporcionar-lhe esse sentimento.

A conduta fria de Abla reverbera em Warda (Douae Belkhaouda), que é uma filha obediente (comprometendo-se perante a mãe a se esforçar mais nos estudos, por exemplo) e bastante sentimental (simpatiza com Samia desde que a vê de longe, pela janela), mas que se entristece com um lar sem emoção. O momento em que ela critica arduamente a genitora é o plot point fundamental para que esta mude de postura – o cubo de gelo custa a derreter, mas derrete.

Não que Abla se torne um poço de afetividade, mas ela vai gradativamente se abrindo ao que a cerca. Parte do mérito se deve a Samia, cuja situação pessoal a comove (ainda que ela não deixe transparecer de início). Samia pede ajuda, o que Abla primeiramente nega, aceitando após vê-la dormindo sozinha em uma marquise à noite. A solidariedade, todavia, é freada por um receio enorme de calor humano. Quando ela vê a visita tendo bons momentos com Warda, parece que o lar ganha um espírito inadmissível.

Visualmente, para além da já mencionada excelente atuação de Erradi e Azabal – a primeira com olhos bem expressivos; a segunda nas sutilezas de seus sentimentos -, sem olvidar o carisma da atriz mirim, o figurino adotado pelas três é bastante simbólico. Warda costuma se vestir de rosa, o que representa a sua natureza infantil; Abla passa boa parte do filme usando roupas de cores escuras (marrom, cinza, azul escuro e preto), o que condiz com sua expressão fechada e sua frieza; Samia prefere cores mais vivas (como amarelo e azul celeste) no vestuário, ainda que a empolgação seja mais uma manifestação ao que lhe é externo.

Nesse sentido, chama a atenção o fato de que as frases mais emblemáticas sejam ditas por Samia, como quando afirma que poucas coisas pertencem a elas, mulheres, de verdade, ou quando brinca com Abla (e toda brincadeira tem um fundo de verdade) que elas (novamente, as mulheres) deveriam protestar em relação à farinha. Ao invés de comandar um filme propagandista, Maryam Touzani opta por imprimir sutilezas ao longa, como a feminilidade (na cena em que Abla se despe em frente ao espelho) e a fraternidade (na cena em que Samia insiste em colocar uma música no estabelecimento). “Adam” é um filme que emociona pela delicadeza com que uma história simples é contada – uma história simples, mas dolorosamente real.