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“ALMA VIVA” – A morte terrena e a morte espiritual [46 MICSP]

A morte pode ser encarada de uma maneira terrena, talvez até formalista, ou de um modo espiritual e fantástico. O que é feito em ALMA VIVA é colocar duas personagens, as principais, focadas no lado etéreo, deixando os coadjuvantes com os aspectos profanos do falecimento. Teria sido melhor optar por apenas um deles.

Salomé aprende rituais posteriores à morte com a sua avó, a quem ela é muito apegada. Com o falecimento da progenitora, o talento da criança para se comunicar com espíritos modifica os seus hábitos e aumenta o conflito na relação entre os adultos responsáveis pelo funeral.

(© 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo / Divulgação)

A direção de Cristèle Alves Meira efetivamente se destaca quando abraça o extraordinário. Nos minutos iniciais, a cineasta cria uma atmosfera ritualística na qual a avó conduz uma pequena cerimônia enquanto Salomé, tomada pela curiosidade, assiste à tudo por uma fresta. O modo como é filmado seu olho, seguido de câmera subjetiva, é bastante efetivo para colocar o espectador junto da pequena protagonista, isto é, no mesmo sentimento de curiosidade. Do ponto de vista sonoro, os sussurros e gemidos, aliados à percussão extradiegética, elevam essa sensação.

Quando Alves Meira, porém, precisa desenvolver o viés mundano de seu longa, há uma queda grande de qualidade. Parte da responsabilidade pode ser atribuída ao roteiro, coescrito com Laurent Lunetta, que erra ao não dar espaço suficiente para os adultos (que pertencem a um subplot subdesenvolvido), assim como erra por não oferecer nenhum elemento de destaque. A rixa entre a avó de Salomé e a avó de Zé é explicada somente ao final, quando o conflito já está estabelecido e sua motivação perde relevância. É interessante que o filme expresse a tentativa de esquiva dos herdeiros em relação à burocracia decorrente do falecimento (e suas consequências, sobretudo financeiras), mas a forma como isso surge é tão direta e superficial que acaba por tirar um pouco do espaço do que é principal.

E o que é principal, evidentemente, é o arco narrativo de Salomé, uma criança cujo vínculo com a avó é reiterado (o que é bom) para, como efeito colateral (o que não é bom), escancarar a limitação de Lua Michel como atriz (mesmo considerando sua tenra idade). A idosa serve de guia para as questões espirituais, é ela quem ensina à protagonista os rituais necessários para ajudar os mortos a encontrar seu caminho e é ela quem a alerta do perigo de seu dom de ter o “corpo aberto”. Entretanto, a relação entre as duas não se limita a assuntos concernentes à morte, sendo a cena em que é a avó quem se torna aluna (no caso, de twerk) uma das melhores do filme. O ápice da demonstração de carinho ocorre quando a neta expressa verbalmente que preferia ter sido acometida pela infecção em seu lugar.

Essa, todavia, é a parte positiva do plot de Salomé. A parte negativa é que, ainda que se considere a pouca idade da atriz mirim, ela não consegue transmitir adequadamente o luto sentido pela morte da avó. Nesse caso, ainda, não há justificativa satisfatória. Por exemplo, seria possível argumentar que, como ela já estava acostumada com a morte, esta seria um fato comum da vida, mesmo quando relativa a um ente querido, dispensando o luto. O argumento, contudo, não procede, sendo suficiente perceber seu comportamento irritadiço quando Rúben joga videogame perto dela.

O que fica claro é que “Alma viva” teria sido muito melhor se a abordagem tivesse focos distintos, como a relação entre as idosas ou o mergulho de Salomé na espiritualidade. A direção tem a sutileza de rimar o falecimento da avó da protagonista com planos em que peixes (mortos) são fritos, tendo na penúltima cena uma aura quase angelical. Ou seja, existem virtudes na produção, porém essas virtudes não foram exploradas da melhor forma possível.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.