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“AMERICAN SON” – Princípio do confronto

Os confrontos são a força motriz de AMERICAN SON, produção original Netflix. Eles aparecem sob a combinação entre as convenções do suspense e a temática racial contemporânea nos EUA, assim como dos embates entre os personagens e de suas realidades muito distintas. Nesse sentido, a narrativa se propõe a elaborar uma escalada de tensão que tenha energia e impacto junto aos espectadores – apesar de querer incomodar, nem sempre o resultado atinge o esperado em termos rítmicos e de roteiro.

Cartaz de “American son”

Tendo como base a montagem feita na Broadway com o mesmo elenco e nome, o filme se passa durante algumas horas da madrugada transcorridas dentro de uma delegacia. O jovem Jamal desaparece e seus pais ficam desesperados por conta da falta de informações e da apreensão pelo risco de algo pior ter acontecido. O casal é inter-racial e formado por Kendra e Scott, duas pessoas de temperamentos fortes que enfrentam uma crise na relação. À medida que o tempo e nenhuma notícia chega, o ambiente do local se torna cada vez mais tenso e as discussões se intensificam.

A origem do material influencia diretamente no estilo da história contada: uma estética teatral por situar a trama em, basicamente, um único cenário, a sala de espera de uma delegacia, e também criar dinâmicas visuais próprias de um teatro filmado. Nesse lugar, todos os conflitos suscitados pelo desaparecimento de Jamal emergem, criando uma ambiente favorável para o desenvolvimento do roteiro e da performance do elenco e a exposição de várias questões sociais. Dois elementos são responsáveis pelo tom dado pelo diretor Kenny Leon:a mise-en-scène de movimentos discretos da câmera e deslocamento constante dos personagens que entram e saem do quadro interagindo através de bastante diálogos; e uma leve variação do tamanho dos planos para situar a geografia das cenas ou a dinâmicas daquelas figuras e indicar as reviravoltas emocionais de uma situação aflitiva.    

É a partir do fato inicial de que o adolescente deixou a casa de carro e não retornou no horário costumeiro que a primeira dimensão dramática se sobressai: a cobrança da mãe por atitudes e esclarecimentos rápidos da polícia desperta momentos de racismo. Enquanto Kendra interage com o agente Paul, diversas problemáticas cotidianas aparecem para representar as discriminações sofridas pelos negros e mostrar como as investigações são contaminadas pela intolerância racial: preconceito social, segregação, privilégio branco e conscientização de sua identidade étnica. Através da interação entre os dois personagens, o racismo fica latente nas perguntas que insinuam a ligação do desaparecido com gangues ou tipos diferentes de crimes e no segregacionismo histórico observado no bebedouro do recinto. Quando o pai entra em cena, o racismo é expresso por suas tentativas de fazer o filho renegar suas origens étnicas e prosperar em uma vida “embranquecida” moldada pelo dinheiro.

Ademais, a presença do tenente Stokes faz a discussão racial adentrar por outro caminho igualmente complexo. Por um lado, Kendra cria Jamal para se portar com força e personalidade na luta contra o preconceito; por outro, o oficial defende a necessidade de priorizar a sobrevivência e a segurança dos negros em um mundo adverso. Já em outras sequências, a obra também aborda assuntos transversais ao conflito central, de maneiras qualitativamente variadas: a burocracia, a inoperância e a truculência policial são bem retratadas pela falta de esclarecimentos sobre o incidente; porém, os problemas do casamento são, frequentemente, apresentados com descuido, como nos desentendimentos quanto aos sotaques do casal.

A diversidade de abordagens temáticas é direcionada pelos confrontos travados por Kendra, Scott, Paul e Stokes. Em duplas (pontualmente, reunindo até mais de dois em cena), suas visões para o caso são colocadas em duelo através de falas com força dramática suficiente para afetar o público. Desse modo, o ritmo é relevante para fazer as discussões elevarem continuamente a tensão e os diálogos assumirem um timing rápido, dinâmico e conflituoso. Contudo, o encadeamento dos diálogos em blocos temáticos distintos alterna entre momentos tensos e outros de menor energia – somente no embate entre as quatro figuras há uma potência dramática maior e um bem-sucedido trabalho de manipulação da inquietação e dos atritos.

São os embates que movem a trama, mas também a evolução dos personagens. Falas tão poderosas socialmente como essas presentes no roteiro permitem a Kerry Washington criar Kendra como uma mulher forte e independente que se impõe contra o racismo e transmite isso ao filho; ainda assim, ela não abandona suas emoções que vêm na forma de angústia, sofrimento ou aflição diante da preocupação com Jamal e da lembrança do preconceito que já sofreu. O restante do elenco não tem a mesma regularidade da atriz, já que Eugene Lee tem pouco tempo de tela e, apesar disso, o aproveita em um confronto potente com a mulher; Jeremy Jordan tem algum destaque apenas nos primeiros minutos quando Paul surge para causar antipatia na mãe e nos espectadores; e Steven Pasquale é o mais oscilante porque acaba se tornando um personagem clichê que repete todas as frases possíveis de quem tenta relativizar a discriminação racial.

Por conta do estilo teatral, então, “American son” possui uma estética, na maioria das vezes, muito discreta (ainda que as poucas cenas fora da sala de espera tenham uma estilização visual que remete à condição emocional turbulenta dos personagens). Assim como suas escolhas determinam um tipo de filme que dá maior destaque ao roteiro e também ficam sujeitas às quedas no ritmo da tensão e aos clichês/conveniências do texto.