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“ASSASSINO POR ACASO” – Sou o que sou ou o que faço? Posso mudar?

Qual a diferença entre a natureza humana e o comportamento, isto é, entre o que se é e o que se faz? O “eu” é uma construção ou é algo dado? É passível de mudança? Essas e outras questões permeiam ASSASSINO POR ACASO, filme que equilibra a reflexão de uma obra inteligente com a diversão inerente a um gênero cinematográfico.

Gary Johnson é um professor universitário de psicologia e filosofia que, nas horas vagas, ajuda a polícia com seus conhecimentos sobre eletrônica para auferir uma renda extra. Certo dia, a equipe pede que ele assuma o papel de Jasper, um policial suspenso, como falso assassino de aluguel, para prender os contratantes. Uma cliente, porém, faz com que Gary quebre o protocolo.

(© Diamond Films / Divulgação)

Escrito pelo diretor Richard Linklater e por Glen Powell (que atua no papel principal), é difícil acreditar que o roteiro de “Hit man” (título original) seja baseado no artigo jornalístico de Skip Hollandsworth e, portanto, em fatos. Gary é um homem comum que se disfarça de matador de aluguel para que a polícia evite os homicídios e prenda aqueles que os encomendam. A premissa é tão absurda que o potencial para uma comédia é enorme.

Esse potencial é bem aproveitado pelo modo como Linklater conduz o humor do longa, cuja montagem e a trilha musical ditam o tom: aquela, com o emprego de wipes pouco usuais na pontuação; esta, com ritmos que se assemelham aos das comédias da primeira metade do século XX. Para além do humor de reforço, que tem pouco espaço (representado pelas personagens de Retta e Sanjay Rao), há uma variação entre o sutil e o escancarado. Quando o filme é sutil, ele é também provocativo. É o que ocorre, por exemplo, quando Gary alimenta seus gatos e se alimenta (havendo uma simetria gráfica, como se ele tivesse uma personalidade felina, o que é depois aproveitado melhor no diálogo com Madison), no diálogo entre ele e o homem que treina tiros (o teor aqui é satírico) e no “obrigado” escrito na sacola na cena do terceiro ato (humor ácido).

O que fica mais evidente, todavia, é o humor escancarado, que se deve, primeiro, à ótima atuação de Austin Amelio no papel de Jasper – cujo cinismo é muito engraçado -, e, segundo (e principal), às caracterizações. Nesse quesito, o filme é muito bom, inclusive quanto ao próprio Jasper, que, corretamente, se enquadra no perfil de um policial rebelde pelo seu vestuário informal e sua barba. Contudo, é Gary quem realmente rouba os holofotes nessa área, revelando uma habilidade camaleônica, para fins cômicos, que Powell ainda não havia demonstrado. Certamente o exterior tem parcela da responsabilidade: na primeira versão, com cabelo preso, óculos quadrados e camisa polo dentro da bermuda jeans; nas seguintes, mediante uma reconstrução constante adaptada a cada cliente, impulsionada por maquiagem, figurino e adereços (dentadura, peruca etc.). O que mais impressiona, entretanto, é a interpretação de Powell, que diverte a plateia ao criar diferentes personas habitando corpos relativamente distintos, se transformando pela linguagem corporal, pelo semblante (a rápida mudança de Gary para Billy é surpreendente) e pela prosódia. O conjunto é deliciosamente caricato e engraçado.

A reconstrução reiterada de Gary faz parte da ideia governante do script, que leva a reflexões profundas, como as mencionadas no primeiro parágrafo. Com base psicanalítica e filosófica, o protagonista conduz o público a, pelo menos, pensar na hipótese de se abraçar uma identidade diferente, caso se deseje. Enquanto a narrativa progride, também os pensamentos do herói evoluem, como um espelhamento. Há um problema, todavia, de ordem estrutural: a primeira parte do filme é tradicional demais, usando a ideia de amor proibido como ponto de partida para um romance que jamais empolga. Não surpreende, inclusive, o uso de voice over nessa etapa, facilitando o intento reflexivo. Ainda que Madison (Adria Arjona, de desempenho ofuscado por Powell e Amelio) não se enquadre no perfil da donzela em perigo, o fato de ter menor função cômica a torna desinteressante. No entanto, o filme cresce muito quando chega no ponto de virada da trama, com circunstâncias que criam um conflito interno e externo instigante. Aqui, o romance e a comédia se mesclam com um inesperado suspense (a cena da escuta, por exemplo, é excelente) cujo desfecho se revela ousado por fugir completamente do moralismo que geralmente seria esperado de uma comédia romântica.

Ocorre que “Assassino por acaso” não é uma comédia romântica comum. A diversão que esse gênero envolve está presente, sobretudo porque a parcela cômica é bem maior que a romântica. Na verdade, o romance serve de pretexto, e é justamente isso que torna o longa notável: sua verdadeira preocupação não é tornar o casal apaixonante ou provocar gargalhadas perante o espectador, mas fazer com que ele pense sobre quem é e o que faz.