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“BRAZIL: O FILME” – Aquarela

São provavelmente incontáveis as interpretações possíveis para BRAZIL: O FILME. Lançado em 1985, pode ser uma crítica à ditadura militar brasileira, que se encerrava naquele mesmo ano e tinha práticas similares. Pode ser uma crítica à Primeira-Ministra britânica Margaret Thatcher, já que a produção é inglesa. É ainda possível que seja mera referência à lenda irlandesa de uma ilha homônima, que fica visível apenas por um dia a cada sete anos. E o “velho Brazil”, como seria?

“Em algum lugar no século XX”, Sam Lowry já está acostumado com sua vida comum e seu trabalho burocrático em um órgão estatal. Certo dia, ele sonha que salva Gillian Layton, uma mulher que realmente existe, mas que é considerada uma terrorista pelo opressivo Estado em que vivem. Porém, é tarde demais: Sam já está apaixonado por ela.

(© 20th Century Fox Home Entertainment / Divulgação)

Em 1939, Ary Barroso compôs “Aquarela do Brasil”, uma música que iniciou um movimento musical conhecido como “samba-exaltação”. Apesar de Barroso ter afirmado que a composição é um samba livre das tragédias da vida, há quem a tenha interpretado como uma ode patriótica ironicamente favorável à ditadura varguista. Trata-se de uma ironia porque o seu reaproveitamento – melhor dizendo, a utilização, como Leitmotiv, da versão em inglês escrita por Bob Russell – em “Brazil”, de 1985, seria uma ressignificação totalmente oposta a qualquer regime ditatorial.

A realidade distópica criada por Terry Gilliam – diretor e corroteirista do longa, também escrito por Tom Stoppard e Charles McKeown – é uma crítica bastante clara a Estados totalitários. O contexto é de guerra contra o terrorismo (o que aparece na televisão nos minutos iniciais) e de um Estado de plena posse de informações sobre seus cidadãos. O governo assume as vestes de um leviatã despótico e agressivo: residências de família são invadidas (por policiais trajados de preto e com suas faces ocultas, salvo o que lê os direitos), pessoas são presas e ensacadas (literalmente) como se fossem objetos. Não é à toa que, quando Sam mexe nos sacos, um policial diz para não tocar porque eles são “propriedade do governo”.

Como consequência desse Estado totalitário, surge a burocracia para dar maior estrutura ao seu aparelhamento. Sam não pode tocar os sacos, porém, se tiver algum familiar ali, pode preencher um formulário. Não que isso adiante, pois, como Jill pôde perceber, sem um carimbo isso não vale de nada. É esse o discurso de diversos regimes ditatoriais: pessoas somem na mesma medida em que suas buscas são obstaculizadas por uma papelada sem sentido. O Ministério da Informação já tem todo o material que precisa para, se necessário, executar sumariamente os inimigos (leia-se, os chamados terroristas).

A sociedade está dividida: enquanto crianças pobres brincam nas ruas colocando fogo em um carro, os ricos se reúnem e ignoram quaisquer distúrbios ao seu redor, que não podem impedir sua refeição – ainda que se trate de uma refeição artificial, já que todos os alimentos parecem ser a mesma gosma, apenas de coloração diversa. A artificialidade está presente em larga escala, seja pelos equipamentos automáticos ao redor de todos (como na casa de Sam, que usa os aparatos com um resultado não muito satisfatório), seja pela busca desmedida por um falso rejuvenescimento.

Katherine Helmond incorpora a mãe de Sam, uma mulher que se submete cegamente às mãos mágicas do doutor Jaffe (Jim Broadbent) para cirurgias plásticas surpreendentes (porém, são procedimentos que não dão certo sempre, ou para todos). O Sam de Jonathan Pryce é corajoso e apaixonado, porém seu sonho, literal e metaforicamente, se torna um pesadelo. Não é fácil ser um inimigo do Estado, ainda que suas ações sejam por amor.

Sonora e visualmente, a produção é brilhante. Do ponto de vista sonoro, a utilização de “Aquarela do Brasil” é um acerto evidentemente pela ideia de escape para uma terra idílica, mas também pela versatilidade da canção, que serve tanto para o onírico (os sonhos em que Sam surge como um cavaleiro alado) quanto para o épico (nas cenas de aventura). Visualmente, Gilliam tem bastante apreço por pirotecnia, mas o longa é um espetáculo de efeitos visuais (considerando, é claro, a época). Com tons psicodélicos, a pele humana pode ser arrastada vários centímetros como se fosse de borracha, os prédios são verdadeiros arranha-céus cinzentos que, assim como ocorre com a utilização de lente grande-angular, transmite uma sensação de opressão e desconforto.

A moda masculina que aparece é coerente com a sua época (casacos longos, ternos, chapéus estilo fedora etc.), porém a extravagância da mãe de Sam está presente em todo o seu visual (do chapéu como um sapato de onça invertido ao cabelo alaranjado). Talvez por isso que ele busque uma mulher mais discreta do ponto de vista estético – surpreendendo-se, porém, ao perceber que Jill (Kim Greist) não é a donzela em perigo que ele enxergava nos sonhos. Os encanamentos que aparecem nos cenários também têm função essencial no design de produção: é emblemática a interligação de tudo através de tubos, certamente reduzindo a privacidade das pessoas, e ainda mais emblemática a explosão da televisão em que aparece publicidade sobre encanamentos. Harry Tuttle (Robert De Niro, quase irreconhecível) pode não aparentar um agente estatal (parecendo um agente secreto agindo à margem da legalidade ao estar quase integralmente coberto com uma roupa preta), mas é muito mais simpático que os funcionários que praticamente destroem a casa de Sam – não à toa, o uniforme destes é vermelho.

Encanamentos, explosões, reviravoltas, humor peculiar (ora inteligente, como no buraco feito no teto da casa dos Buttle, ora estilo “pastelão”, como quando Harry e Sam se esbarram ao tocar a campainha)… “Brazil: o filme” é composto por peças bem provocativas, é uma mescla de manifesto com fantasia. Essa mistura – uma aquarela! – de delírio com crítica social acaba sendo uma fórmula inteligente para uma diversão que não recomenda paralelos. Do contrário, melhor não “retornar ao velho Brazil”.