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“CANÇÕES DE UMA TERRA ARDENTE” – Sobre o forte e o fraco [14º ODC]

CANÇÕES DE UMA TERRA ARDENTE, de Olha Zhurba, faz questão de evidenciar seu distanciamento da guerra. Trata-se de um filme sobre o conflito que desola a Ucrânia desde 2022, sim, mas o que vemos na tela a todo instante não são soldados, tanques, metralhadoras. Estes estão ora à alguns quilômetros de distância, ora à tantos que a guerra parece mais um estranho entressonho. Não estamos no front, mas no novo e cruel cotidiano do território ucraniano, onde o som das bombas e aeronaves tornou-se tão familiar quanto o sopro do vento.

(® Olhar de Cinema / Distribuição)

A estratégia formal de Zhurba é conhecida: estamos diante de um rigoroso documentário observacional, cuja câmera não ataca, não invade, não violenta, mas olha atentamente, em silêncio. Observa a angústia dos civis que empurram corpos como empurrariam meras coisas para conseguirem embarcar mulheres e crianças no trem que partirá para algum lugar incerto, mas de certo longe dali; observa senhoras que choram em desespero pelos espaços e imagens de todos os seus 70 anos de vida desaparecendo em segundos; observa os padeiros que, a despeito do alerta das sirenes, continuam a assar os pães, para que, além do refúgio, se tenha comida. Longe dali, longe dos sons e dos destroços, na Ucrânia profunda, imagens distintas: onde havia escombros e multidões, há a ausência dos homens que partiram para a linha de frente, e povoando o vazio há jovens garotos, para os quais granadas e capacetes e ferimentos são menos horror e mais fantasia – exceto quando o ruído ensurdecedor dos jatos sobrevoando os campos os lembra da verdade.

O cerne de “Canções de uma terra ardente” é, sem dúvidas, o longuíssimo plano em que a câmera de Zhurba é posta, imóvel, atrás do para-brisa de um veículo que trafega por entre as ruas de uma cidade no interior do país. Nas calçadas e acostamentos, todos os pedestres se ajoelham assim que o veem se aproximar; em alguns pontos, já o esperam com bandeiras erguidas, sejam azuis e amarelas, ou as ocasionais vermelhas e pretas do movimento nacionalista. Depois do longo trajeto, o filme revela o que já ficara evidente: se trata do caminhão que lidera um comboio militar trazendo os caixões de soldados mortos para seus enterros. A despeito dos numerosos símbolos sócio-políticos que a cena esbanja, Zhurba faz com que luto e tragédia os engulam, momentaneamente.

Momentaneamente porque, não muito tempo depois, próximo do fim do filme, surgem planos de espírito oposto. Mais uma vez ressaltando a distância das imagens vistas do conflito, somos informados que agora estamos há mais de 3.000 km do front, o que quer dizer que só podemos estar em outro país, e estamos: os planos mostram, por menos de um minuto, um colégio russo, em que crianças marcham e entoam canções militares. A rigidez estéril e de ares autoritários e doutrinadores da cena é precedida por uma outra, muito mais longa, que retrata um colégio na Ucrânia, em que adolescentes debatem aberta e democraticamente sobre a guerra, o futuro, a sociedade.

A justaposição, de um didatismo pobre e de um imprudente reducionismo, reverbera intensamente em “Canções de uma terra ardente”, ativa e retroativamente – no mundo imagético, afinal, mesmo as mais breves imagens fracas por vezes vencem as fortes. Se o trunfo de Zhurba até ali havia sido exorcizar o comum do atroz, isolar os homens dos monstros, separar o indivíduo de seus símbolos, a sequência dos dois colégios sugere que a ideia talvez seja outra, que um certo comum, certos homens e certos indivíduos já nascem culpados: atrozes, monstruosos e simbolizados.

* Filme assistido durante a cobertura da 14ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (14th Curitiba Int’l Film Festival).