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“CRIP CAMP: A REVOLUÇÃO PELA INCLUSÃO” – Outra faceta dos direitos civis

Um documentário sobre pessoas com deficiência poderia cair na vitimização melodramática que pretende impor a emoção do público com soluções fáceis. Entretanto, CRIP CAMP: REVOLUÇÃO PELA INCLUSÃO traz um olhar absolutamente distinto, graças à presença de James Lebrecht na direção ao lado de Nicole Newnham (ele próprio portador de uma síndrome que lhe retirou o movimento das pernas). Por não ter uma perspectiva distanciada da questão, o filme se constrói a partir da ideia de ação positiva.

(© Netflix / Divulgação)

Começando pelo conteúdo imediato em si, a produção já tem o mérito de apresentar acontecimentos que podem não ser tão conhecidos. Na década de 1960, alguns adolescentes deficientes convivem durante um verão no acampamento Jened, local direcionado para esses indivíduos. Ao passarem um tempo juntos, o grupo de campistas se tornou ativistas e moldou o movimento pelos direitos de pessoas com deficiência, ajudando a mudar a legislação de acessibilidade para todos.

James Lebrecht e Nicole Newnham são habilidosos em imprimir uma visão otimista para um tema que poderia ser examinado apenas pelo viés da dor e do sofrimento. Ao invés de fazer isso, a dupla politiza a narrativa sob muitos aspectos, inicialmente relacionando o acampamento ao Festival de Woodstock. O evento símbolo de um período de luta por liberdades comportamentais, paz e amor, um modo de vida alternativo e uma sociedade menos desigual encontra eco em Jened: uma das campistas comenta que aquele local era seu Woodstock possível; os monitores se vestiam e agiam à semelhança de hippies; músicas, drogas e relações amorosas ocorriam durante o verão; e decisões sobre a alimentação eram tomadas coletivamente quando o cozinheiro estava de folga. Há um sentimento de liberdade que transborda na tela através do despojamento do diretor do lugar (fica sem camisa e trabalha próximo de todos) e, principalmente, da percepção dos campistas de que ninguém ali os exclui ou trata como doentes inválidos.

O modo como os diretores filmam o cotidiano do acampamento certamente contribui para lançar um olhar familiar e interno sobre o grupo de pessoas deficientes. Em muitos momentos, a câmera registra as atividades diárias como um personagem que observa e vivencia cada detalhe – o próprio James Lebrecht ainda jovem captou as cenas dado seu interesse por equipamentos eletrônicos, o que explica o ponto de vista e o ângulo das filmagens. Analisando a estética das imagens, é possível notar como a narrativa se desenvolve majoritariamente a partir de registros de época filmados com dispositivos simples e amadores (a textura granulada, ase sequências em preto e branco, os enquadramentos fechados e aproximados…), fazendo com que esses indivíduos apareçam agindo – uma decisão valiosa para não caracterizá-los como passivos, mas como sujeitos em movimento que fazem diferentes atividades.

A politização também surge através da forma como as pessoas com deficiência são apresentadas e desenvolvidas, tanto em termos coletivos quanto individuais. Desde o período em que ficaram juntas em Jened, elas desenvolveram um sentido de coletividade que as fizeram se sentir livres para se comportarem sem medos ou ansiedade (algo constantemente mencionado e representado nas cenas em que praticam esportes, cantam ou simplesmente interagem). Ao mesmo tempo, suas próprias histórias são valorizadas a ponto de se poder acompanhar os primeiros namoros de James, o florescimento da liderança de Judy, a vida sexual de Denise e seu casamento com Neil, o engajamento político de Ann e a fluidez “rebelde” da identidade de Steve. A partir dessas e tantas outras trajetórias de vida, o documentário mostra como os afetos e a sexualidade podem ser políticos porque envolvem uma luta pelo direito de se expressarem e viverem sem discriminações.

Da mesma maneira que a decupagem simboliza uma postura ativa (Judy comenta que todos eles precisam agir positivamente, pois o mundo ao redor já vai colocar barreiras), também ressalta o ativismo que faria parte de suas vidas anos depois. A narrativa progride sem depender do estilo convencional de encadeamento de entrevistas, nas quais os indivíduos com deficiência apenas contariam suas histórias. O recurso até está presente, porém os documentaristas o utilizam com moderação para complementar e dar uma face atual aos relatos daquelas pessoas. Na realidade, a preferência é pelas imagens de arquivo que representam a passagem do tempo pela década de 1970, o movimento de suas vidas e o crescimento do ativismo por melhores condições de vida – essa escolha faz o público mais observar as ações políticas se materializarem do que somente ouvir o que aconteceu sem poder ver os fatos em si.

Por um momento parece que a produção iria se ater ao acampamento. Na verdade, o local é um ponto de união das pessoas com deficiência para desenvolverem sua militância por direitos à acessibilidade e pelo combate aos preconceitos. Sob a liderança de Judy, muitos daquele grupo e outros recém-chegados se unem pela luta da aplicação do artigo 504 da lei dos direitos civis, que pressupunha reformas nos transportes, na educação, na saúde e no mercado de trabalho para garantir uma cidadania plena e mais humana. Com o redirecionamento da obra, a montagem auxilia a situar as manifestações realizadas pelo grupo, como protesto das ruas, a formação de um centro de ajuda mútua e ocupações de espaços públicos – o mérito também está em entrelaçar as lutas das pessoas com deficiências a outros movimentos dos anos 1960 e 1970, como os protestos contra a guerra do Vietnã e os Panteras Negras.

Além da militância política mais direta, outros caminhos preencheram as vidas daqueles indivíduos e recebem atenção dos realizadores. São os casos de Steve, que participa de uma performance e exercita outras identidades de gênero; de James, que se esforça para trabalhar com o que gosta no mundo das artes; e de Denise, que não tem vergonha de sua vida sexual e decide fazer mestrado sobre sexualidade. No entanto, Denise argumenta que a luta por mudanças na legislação não se completa sem mudanças nas atitudes da sociedade, uma constatação que já havia perpassado as trajetórias das pessoas com deficiência. Isso porque as atitudes e as mentalidades de cada um daqueles indivíduos foram transformadas pelo acampamento Jened, o que justifica a narrativa se fechar em ciclo novamente no local com a irrupção de encontros, memórias e emoções.