“DETETIVE CHINATOWN: O MISTÉRIO DE 1900” – Excessos de tramas, estilos e mensagens
No cenário pós-pandemia, a crise do cinema fez com que diferentes tipos de filmes fossem ofertados para os espectadores em busca do retorno das maiores bilheterias. Por isso, em um futuro próximo, é possível que filmes chineses cheguem com maior frequência ao Brasil em função da força audiovisual no país oriental, da importância econômica de seu mercado e da alta arrecadação de títulos como “Ne Zha 2“. Tais fatores podem proporcionar o contato com obras interessantes e experiências enriquecedoras. DETETIVE CHINATOWN: O MISTÉRIO DE 1900 pode satisfazer em parte essas sensações, já que a narrativa não se sustenta para além da curiosidade inicial.

O quarto filme faz parte de uma franquia de sucesso na China. Dessa vez, a mistura de aventura, comédia e mistério cria uma investigação em São Francisco, nos EUA, na virada do século XIX para o XX. No local, uma jovem, filha do congressista Grant que odeia imigrantes chineses, e um senhor indígena foram assassinados. O principal suspeito é Zheng, filho de um negociante influente em Chinatown chamado Bai Xuanling, em um contexto de xenofobia contra estrangeiros. A investigação é conduzida por Qin Fu, um detetive hábil em raciocínio lógico, e Ah Gui, um indígena em busca de vingança pela morte do pai.
A dupla de diretores Chen Sicheng e Mo Dai trabalha a narrativa sob o princípio criativo do excesso, não apenas devido à integração de vários gêneros cinematográficos. Há muitas subtramas, personagens e discussões temáticas entrelaçados em torno do conflito central da investigação do crime, nem todos desenvolvidos com a mesma força dramática. O mistério conecta a discriminação contra indígenas, chineses e negros nos EUA, as dificuldades dos imigrantes em um novo território, os debates sobre políticas segregacionistas/preconceituosas de democratas e republicanos contra os chineses representadas pela figura interpretada por John Cusack, as tentativas de revolução de rebeldes contra o império chinês e a repressão dos governantes orientais contra os revolucionários. Quando os cineastas se concentram na relação entre os assassinatos e o crescimento da xenofobia, o filme consegue um desenvolvimento coerente. Porém, tudo que orbita a revolução na China não deixa a superficialidade de referenciar algo que não se pode entender o que envolve.
De forma análoga, a decupagem também falha ao não conseguir criar um princípio orientar para os excessos estilísticos. No primeiro ato, é difícil deixar de lado a impressão de que os diretores querem dar dinamismo até em cenas mais contidas de diálogo ou de processamento de fortes emoções. Ao invés de explorar a dinâmica dos personagens ou os embates internos, a encenação coloca a câmera em constante movimento, fazendo-a tremer e passar de um plano a outro como se fosse um momento de perseguição. Além disso, a montagem como um todo se apoia em vícios que não são controlados um minuto sequer. A cada nova sequência, o público pode se sentir diante de um grande acontecimento, pois a construção dramática e estética faz parecer que tudo a ser revelado ou vivido é o auge da trama. Em certos instantes, não se trata de algo tão apoteótico. Por outro lado, se tudo é decisivo na mesma intensidade carregada, nada é tão fundamental. E a quantidade exacerbada de flashbacks pode indicar falta de criatividade para o progresso da narrativa ou desconfiança em relação à capacidade de compreensão dos espectadores. Se um novo evento surge, o padrão repetitivo de voltar ao passado para mostrar como ocorreu estará lá.
É verdade que alguns excessos encontram um caminho recompensador, sobretudo quando levam a uma estilização da composição visual ou da dinâmica de personagens específicos. As sequências de ação, por exemplo, ganham destaque por serem construídas com um carga fantasiosa que renega qualquer efeito de realismo e verossimilhança. Nesse ponto, remete ao estilo de “RRR: Revolta, Rebelião, Revolução“, embora o filme indiano seja superior em trabalhar seu universo e características. De certa maneira, a estilização pode ser fruto da concretização estética de uma trama baseada em uma escala grandiosa, como o uso do slow motion, a construção de set pieces e a exploração espacial das locações. Em outros casos, as atitudes inverossímeis dos personagens podem simbolizar os traços culturais de povos não ocidentais, como as habilidades místicas de Ah Gui para o fortalecimento do corpo. Ainda assim, as cenas em questão e outros exemplos similares mantêm uma timidez considerável, já que o caráter fantástico ou imaginativo dura pouco tempo e não aprofunda nos seus próprios exageros.
Qin Fu e Ah Gui traduzem o principal mérito dessa unidade estética por exagerarem na relação entre eles. Liu Haoran e Wang Baoqiang são responsáveis diretos pelo sucesso da interação de dois investigadores inesperados, graças ao carisma dos atores e do desenvolvimento de um tipo de comédia física com timing eficiente (uma expressão específica, uma troca de olhares especial, uma movimentação corporal incomum…). O encontro acidental, a recusa inicial da parceria, a aproximação das personalidades deles, a comunhão em torno da exclusão sofrida por eles e a consolidação da dupla acompanham eventos que criam aquela relação de parceiros evocativa de “Máquina mortífera” e outros filmes semelhantes. O humor, possivelmente, beneficia-se da criação de uma sequência que se encapsula em uma escala mais reduzida, quase como um recorte episódico. O exemplo mais evidente é a combinação entre um show de mágica e lutas corporais nos bastidores. O momento é simples, depende de um dispositivo facilmente reconhecível, mas funciona devido ao absurdo da situação.
“Detetive Chinatown: o mistério de 1900” encerra com a ideia de excessos a partir das várias abordagens temáticas que suscita. De modo imediato, podem ser excessos ligados às diversas reviravoltas para a solução dos crimes, a identificação dos culpados e o enfrentamento das suas consequências sociais. De modo simbólico, o filme também excede o espaço fílmico e faz comentários sobre a contemporaneidade. Dispensando as facilidades de um final feliz, a conclusão aborda o difícil cenários dos imigrantes nos EUA ao longo de sua história, sobretudo em momentos de radicalização da Era Trump. No entanto, trata de forma ambígua o ideal de igualdade que estaria na base da formação daquele país. Em certas passagens, cria-se a impressão de que o filme acredita que seria um direito pleno e fundante nos EUA, apenas não concretizado em períodos específicos. Desde sua fundação, o país se desenvolveu sob a exclusão e a falta de igualdade. Em paralelo, o desfecho também faz alusão, através da citada revolução desejada por alguns personagens, à ascensão política da China em escala global e às disputas contemporâneas com o governo Trump. Pena que ambos os momentos sejam feitos a partir de cenas simplórias, nas quais o texto precisa gritar em tom panfletário o que as imagens já poderiam comunicar.
