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“ERVAS SECAS” – Verão e inverno [47 MICSP]

Qual a melhor solução diante de um possível ato grave: recorrer aos trâmites formais, como orientado, ou esclarecer a situação antes de agir, evitando precipitação, mas correndo o risco de conivência? O que deve ser feito diante de uma acusação cujos pormenores são desconhecidos? Como adquirir um senso de pertencimento? Seria ele necessário? Os problemas da humanidade têm solução? O que dá sentido à vida? Essas e outras questões emergem de ERVAS SECAS, um filme extremamente denso que conduz a uma espiral de perguntas sem resposta.

Ávido por trabalhar em Istambul, Samet está terminando o quarto ano de serviço obrigatório em um vilarejo remoto, podendo em breve passar a ser professor na capital. Sua chance de transferência é abalada quando ele é acusado de conduta inapropriada em relação a alunas.

(© NBC Film / Divulgação)

Com uma premissa similar à de “A caça”, de Thomas Vinterberg, “Ervas secas”, diferente daquele filme, não se prende a ela, tendo pretensões bem maiores. O roteiro, escrito pelo diretor Nuri Bilge Ceylan junto de Akin Aksu e Ebru Ceylan, se divide entre uma lenta progressão narrativa, com poucos acontecimentos em 197 minutos, e diálogos que ampliam o significado da trama. Existem mudanças, como a exclusão de Samet e Kenan perante os demais professores (dado que confraternizam com tranquilidade apenas no começo), mas a preocupação de Ceylan não é com o que acontece com Samet, mas como seu protagonista reage em relação ao que acontece. Nessa caminhada, o texto é rebuscado e perpassa por diversos temas, como a interação entre arte, artista e admirador (há um exercício metalinguístico de rompimento com o universo diegético, que causa estranhamento, mas simboliza a encenação que o momento narrativo representa), a estrutura burocrática da rede de ensino e, o que é mais importante, reflexões variadas sobre a existência e a sociedade.

O fato que catapulta a trama (a denúncia) é envolto em uma teia complexa que não pode ser encarada de modo unidimensional. Por um lado, agiu certo o diretor em seguir as regras, por outro lado, não é desarrazoado o pensamento de Samet de que ele deveria ser ouvido antes. Há mais do que pontos de vista, há maneiras distintas de enxergar um mesmo objeto. Isso vale para o ocorrido, mas vale principalmente para os assuntos que são debatidos nas conversas intrincadas de que Samet participa. O roteiro elabora diálogos divertidos que atenuam a tensão do que é mais central (a concordância inabalável de Kenan com Nuray, tentando agradá-la), o que enriquece o resultado final sem ofuscar as conversas mais profundas. Em uma delas, o protagonista é confrontado, no que concerne à sua visão de mundo, por Nuray, momento em que Merve Dizdar brilha ao transmitir a dubiedade da personagem. Estaria Nuray correspondendo? Seria o seu olhar de censura o tempo todo? (O que ocorre não exclui essa possibilidade, considerando o pedido feito a Samet)

Pelas aparências, Samet é um homem ruim. Olhando com mais atenção, percebe-se que não é bem esse o caso, ficando a dúvida se o protagonista se revela ou se transforma em perverso. Existe uma mudança em seu comportamento, passando por quatro momentos. No primeiro, ele é um professor gentil que defende uma aluna até mesmo perante uma colega e que tenta mostrar para a aluna que é diferente dos demais. Possivelmente, Samet se enxerga em Sevim, interpretada com candura fascinante por Ece Bagci. Posteriormente, o comportamento do protagonista se torna agressivo e ríspido, falando o que considera verdades sem filtro algum. Em seguida, defende a própria postura como altruísta: “é errado tentar melhorar os costumes atrasados? Se nós professores não fizermos isso, quem o fará?”. No quarto momento, Samet perde qualquer freio e se torna um niilista completo. Com acerto, Deniz Celiloglu não incorpora uma maldade caricata, pois sabe que o poder dessas mudanças está nas sutilezas e no texto. Existe a chance de Samet não se conhecer direito, uma vez que é suscetível às descobertas que surgem e tenta se passar por politicamente isento. Mais do que tudo, Samet é uma pessoa em absoluta descrença sobre tudo e sobre todos, que rejeita a hipótese de um lugar de pertencimento, como se a sociedade vivesse em um estado de natureza.

A gélida fotografia, enfatizando a neve do local, associada a noites bem escuras e mal iluminadas (indireta, amarela e fraca, geralmente oriunda de abajures) corresponde à visão de mundo de Samet. A cor vermelha surge como símbolo da bondade (na placa “dê a preferência” do primeiro plano, quando ele ainda é bom, os sapatos da aluna carente, o vestido de Sevim). No figurino, as roupas escuras traduzem o frio da região, assim como o lado sombrio do longa. “Ervas secas” é um filme duro, no qual gestos de bondade podem, no máximo, significar a atenuação de gestos de maldade, jamais os apagando. No único momento em que a estética exala alegria, com cores quentes e dias mais claros, o protagonista se coloca no alto para ter uma visão panorâmica e retrospectiva do que viveu. O momento é de verão, mas o inverno retornará, os problemas retornarão e, se ele não mudar, é provável que sua existência realmente seja inútil como as ervas secas.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).