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“EXPRESSO DO AMANHÔ [1ª TEMPORADA] – Conflitos permanentes

Transportar uma trama já existente nas histórias em quadrinhos e no cinema para o mundo das séries desperta dúvidas e incertezas. Essa decisão é fruto da falta de originalidade? De simples interesse econômico caça-níqueis? Da replicação de uma narrativa para outra mídia? O seriado EXPRESSO DO AMANHÃ bebe da fonte original da HQ francesa “Le Transperceneige“, dialoga com o filme homônimo e define outra possibilidade para a alegoria da luta de classes em um ambiente adverso e fantasioso.

(© Netflix / Divulgação)

Inicialmente, a produção original Netflix parte da premissa já observada nos outros projetos. As tentativas de pôr fim ao aquecimento global por um grupo de pesquisadores não saem como o planejado, fazendo a Terra se tornar um deserto de gelo impróprio para a vida. Os únicos sobreviventes vagam pelo planeta a bordo do trem Snowpiercer, porém nem todos estão satisfeitos com esse modo de vida e, por isso, pretendem fazer uma revolução. As semelhanças se concentram sobretudo no ponto de partida, pois o desenvolvimento dos episódios demonstra como as tensões classistas reverberam em toda a situação conflituosa.

No início da temporada, há detalhes que remontam à HQ e ao filme, como a criação do universo diegético: a narração em voice over e a animação contextualizam o desequilíbrio climático e a criação da locomotiva como estratégia de sobrevivência pela proteção contra o frio extremo; já as primeiras cenas de ação revelam o sofrimento da população pobre, que se sacrifica para entrar no veículo e, mais tarde, se revolta para ficar em vagões com condições aceitáveis. Contudo, todo o esforço não resulta em melhorias para suas vidas, gerando na verdade uma divisão social entre a Primeira Classe (os ricos), a Segunda Classe (funcionários emergentes, como a professora e a responsável pela agricultura), a Terceira Classe (classe média) e os Fundos (os pobres) – desigualdade também exposta pela elegância das roupas de quem está nos espaços amplos e iluminados com uma forte luz artificial da Primeira Classe; e pelos trajes maltrapilhos e surrados usados pelos fundistas em ambientes iluminados apenas com o cinza e o marrom.

A despeito das similaridades com as outras mídias, a série opta por encenar a natureza desigual do trem com seus próprios elementos. Os showrunners Josh Friedman e Graeme Manson impõem uma visão mais singular e influenciam os diretores a não repetirem a sensação de claustrofobia e restrição espacial, já que a organização geográfica dos compartimentos um em relação ao outro não é o grande objetivo. A intenção é mostrar a divisão classista através das limitações impostas aos fundistas (racionamento de comida, confinamento a um espaço sem recursos, exigência de se curvarem aos membros da administração…); da violência brutal aplicada sobre os personagens que se rebelam como acontece nas punições após a primeira tentativa da revolução; e da aproximação ao cotidiano comum na classe média devido à criação de novos ambientes (o vagão-leito como um cabaré e os biombos de prestação de serviços espalhados por um corredor estreito).

Por outro ângulo, ainda existem diferenças no desenvolvimento da trama. Se as outras obras priorizavam o processo revolucionário dos excluídos contra os poderosos, o seriado leva as tensões e contradições de classe para outro patamar que se estende a cada instante da vida. Assim, o enredo atravessa muitos fatos que poderiam ocorrer fora do Snowpiercer, porque eles traduzem o antagonismo material e sensorial de indivíduos em posições sociais distintas: as investigações de assassinatos, o julgamento do culpado, a realização de uma greve, a superação da escassez de recursos, o enfrentamento do risco da morte; enfim, cada conflito dramático se assenta em personagens que procuram manter/ampliar privilégios, aqueles que desejam ascender socialmente e outros que buscam direitos básicos para a existência. Logo, a locomotiva é um microcosmo da sociedade também na rotina diária e excludente.

Ao trazer figuras que correspondem às diferenciações típicas do capitalismo, o roteiro trabalha com eficiência o fato de terem pouca individualidade e se comportarem mais como categorias sociais. É por esse viés que a administração composta por Melanie e Ruth justifica atitudes violentas com argumentos de salvação da humanidade; a Primeira Classe, exemplificada pela família Folger, se apresenta como um grupo interessado em suas comodidades e regalias que, a qualquer momento, pode trair os próprios aliados; a Terceira Classe, representada por Zarah, Till e Audrey, transita por diferentes possibilidades até tomar consciência de sua condição social; e o Fundo, apresentado principalmente por Layton e Josie, demonstra um sentimento de coletividade que os mobiliza para lutar por melhorias em suas vidas. Tais oposições são destacadas pela Melanie, criada com frieza por Jennifer Connelly, que interage com Layton, interpretado com uma solidariedade apaixonada por Daveed Diggs.

Em termos de estilo, altera-se também o gênero predominante. Há passagens baseadas no suspense para definir mistérios, reviravoltas e cliffhangers, porém a narrativa não prolonga a continuidade desses enigmas e entrega resoluções antes do esperado. Isso porque a escolha é potencializar a estética e as convenções da ação para a história a partir de muitos momentos de perseguição e confronto físico, além de riscos naturais submetidos ao trem. À medida que as etapas necessárias para uma revolução se sucedem, a ação ganha mais espaço e a tomada do controle do veículo pelos fundistas revela outros espectros daquela representação social: elaboração gradual de um plano revolucionário; contra-ataque das forças inimigas; conspirações, chantagens e ameaças em diversos núcleos; dificuldades para uniões entre classes; e traições somadas a alianças inesperadas.

Distanciando-se de impressões que questionam o sentido de outra adaptação, “Expresso do amanhã” aproveita o universo básico de um trem dividido em classe sociais e direciona sua narrativa e unidade estilística para outras possibilidades. Utiliza a ação, a simbologia dos fatos dramáticos, a expansão do universo e a ambientação dos comportamentos para afirmar como as tensões de um mundo capitalista recaem permanentemente sobre eventos mais fantásticos ou situações mais corriqueiras. Por conta dessas variações em um material original ainda perceptível, a série aponta para novos rumos: se começou como uma distopia que extrapola as desigualdades de classe, encerra-se na primeira temporada como uma utopia confrontada pela resistência a um mundo diferente.