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“FLEE: NENHUM LUGAR PARA CHAMAR DE LAR” – Uma poderosa palavra

“Quando penso no meu lar / Penso em um lugar onde há amor brotando”, escreveram Richard Louis Simmonds e Stephen Christopher Jones em “Home” (canção que fez sucesso na voz de Diana Ross, em “O mágico inesquecível”, de 1978). É difícil compreender o quão traumático é, para o protagonista de FLEE: NENHUM LUGAR PARA CHAMAR DE LAR, pensar no mero significado da palavra “lar” – afinal, como está no título nacional, ele não tem “nenhum lugar para chamar de lar”. O filme, porém, traduz essa dor com bastante emoção, quiçá fornecendo uma pequena fração do sofrimento de Amin.

Ainda na infância, Amin Nawabi fugiu do Afeganistão com alguns de seus familiares. Hoje ele é um acadêmico bem-sucedido e prestes a se casar com seu namorado, Kasper, contudo seu passado doloroso de fuga ainda o atormenta. Por isso, decide revisitar os eventos que tiraram dele o seu lar.

(© Diamond/Galeria / Divulgação)

Escrito pelo próprio Amin Nawabi juntamente do diretor Jonas Poher Rasmussen, o longa parte de uma premissa de confronto. Todavia, não se trata de um confronto com o outro, mas consigo mesmo: Amin se dispõe a confrontar o seu passado para assim ter um futuro. Desse modo, o texto caminha por dois períodos (pretérito e presente diegético) para costurar uma narrativa focada na trajetória de seu protagonista, contudo sem isolá-lo de seu contexto histórico e de suas particularidades.

No contexto histórico, tudo começa com a Cabul da virada dos anos 1970 para 1980, prosseguindo para a Moscou pós-comunismo. Para fortalecer o lado documental do longa, Rasmussen cria uma obra majoritariamente animada, inserindo recortes históricos meramente ilustrativos (como ao mostrar o mercado em Moscou). É importante saber a realidade em que Amin vivia desde a infância porque isso explica, em parte, seu comportamento. Mais especificamente, a dificuldade em aceitar-se homossexual é fruto de uma cultura em que a homossexualidade é digna da maior reprovação – o que explica inclusive o receio da reação da família. Usar um vestido feminino era brincadeira infantil; sentir-se atraído por uma musculosa estrela de filmes de ação, um segredo absoluto.

O que é fincado na realidade geral (condições sociopolíticas dos locais onde Amin morou) é demonstrado pelas imagens de arquivo, porém mesmo na animação o aspecto documental está presente. No presente diegético, Amin é entrevistado e narra, em primeira pessoa, aspectos da sua vida, em cenas típicas de um documentário biográfico (até mesmo pelo enquadramento em primeiro plano). O longa ganha um ar ficcional quando mostra o que há de mais sombrio do passado do protagonista (em geral, eventos dos quais ele tem conhecimento, mas não presenciados por ele), em cenas nas quais a animação perde suas cores e se torna bem menos detalhista, tornando-se, do ponto de vista imagético, relativamente abstrata e um pouco aterrorizadora.

Mesmo com as imagens de arquivo e a animação sombria, o que prevalece é uma animação 2D mais naturalista. O desenho tem traços fortes e personalidade, sem licenças para tornar a realidade mais simpática (ou seja, é mais fidedigna em relação ao real, sem infantilizar graficamente o que retrata). Há muitas vantagens no uso da técnica (de animação), como a desnecessidade de usar atores parecidos para os papéis (por exemplo, as versões infantil e adulta de Amin), já que bastam as vozes. Outro benefício é o espaço deixado para a narrativa exercer, por si mesma, os efeitos dramáticos que dela decorrem. O trabalho de dublagem auxilia na dramaticidade (assim como o lirismo da trilha musical instrumental), mas é a própria trajetória de Amin que emociona o público.

É natural que, ao ler o caderno usado ao chegar na Dinamarca, Amin não consiga entender a própria caligrafia, tampouco o idioma em que escreveu: ele já é outra pessoa. Entretanto, é proveitoso para ele adentrar nas fragmentadas memórias que possui, pois assim consegue compreender melhor a pessoa que é hoje. Os eventos que ele revisita são uma sequência quase incessante de suplícios. É de se lamentar que, ainda na infância, ele tenha se defrontado com o sumiço de um familiar, a iminência de uma guerra civil e a corrupção policial, dentre outras dificuldades. O alívio, além de passageiro, é anêmico: se as novelas mexicanas divertem, elas não elidem o fato de que assiste a elas por não poder sair da residência (que certamente não constitui um lar); se o crush na fuga da Rússia interessa, ele não representa mais do que uma distração em um efêmero instante de aflição.

Para Amin, lar é um lugar seguro e não temporário. Não é essa, todavia, a sua experiência prática da infância e da adolescência, o que reverbera com efeitos deletérios na idade adulta. Nesse sentido, “Flee” acaba sendo para ele uma experiência de autocompreensão. Para o público, um aprendizado sobre a importância do significado de uma poderosa palavra.