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“FREE GUY – ASSUMINDO O CONTROLE” – Videogame consciente

Adaptações cinematográficas de videogames costumam ter sua própria trajetória singular de dúvidas, percalços, questionamentos, frustrações e êxitos eventuais. Nessa seara, as primeiras lembranças são negativas com “Street fighter“, “Mortal kombat” e “Super Mario Bros“. Entretanto, nem tudo é terra arrasada se considerarmos os sucessos comerciais da franquia “Resident evil” e da duologia “Terror em Silent Hill“. Qualquer que seja o resultado final, uma questão sempre retorna nas discussões sobre o tema: adaptar jogos para o cinema seria desafiador porque o público assumiria uma posição passiva menos atrativa do que o ato em si de jogar. Pode ser limitador para o debate não incluir reflexões sobre a apropriação da linguagem dos games pela linguagem cinematográfica, por isso este é um dos pontos que pode nortear análises sobre FREE GUY – ASSUMINDO O CONTROLE.

(© Fox Film do Brasil / Divulgação)

No mundo virtual em questão, Free City é uma cidade desenvolvida como cenário para um jogo de RPG online de multijogadores pela Soonami Studio. Neste ambiente, Guy é um NPC, um figurante não controlado por jogadores, que vive uma rotina entediante como caixa de banco ao lado do seu melhor amigo, o segurança Buddy. No mundo real, Millie Rusk tenta provar que o código-fonte escrito por ela e por seu amigo Walter “Keys” foi roubado pelo chefe da Soonami Studio, Antwan Hovachelik, para criar Free City. As duas histórias se cruzam quando o avatar controlado por Millie, Molotov Girl, passa por ele na rua cantando “Fantasy” de Mariah Carey. Tal qual um elemento disparador de mudanças, este encontro faz com que Guy se desvie de sua programação e interfira nos rumos do jogo.

Colocar Molotov Girl para cantarolar “Fantasy” não é mera coincidência. Desde os primeiros minutos da narrativa, o diretor Shawn Levy mostra que aquele universo pode parecer próximo ao nosso, mas apenas parece. É interessante lembrar que o aspecto fantástico é marcante na filmografia do cineasta, como se pode observar na duologia “Uma noite no museu” e em “Gigantes de aço“. Dessa vez, ele apresenta o cotidiano de Guy à semelhança de “O show de Truman” e “Mais estranho que a ficção“, sendo prosaico na superfície e fantasioso na essência mais profunda. Inicialmente, o protagonista repete diariamente o mesmo ritual de acordar, dar bom dia ao peixe dourado, vestir a mesma combinação de camisa azul e calça bege, comer seu cereal favorito, comprar o mesmo café, trabalhar no banco, conversar com Buddy e falar seu bordão “Não tenha um bom dia. Tenha um ótimo dia!”. Seria uma realidade comum se o cenário ao redor não fosse uma versão estilizada do jogo GTA, tendo pessoas com óculos escuros e roupas chamativas assaltando bancos, agredindo transeuntes, fugindo de perseguições e destruindo construções. O curioso é notar que todos aqueles que não usam óculos aceitam com naturalidade essa violência, gerando humor as reações padronizadas, por exemplo, aos sucessivos assaltos a banco.

O encontro entre Guy e Molotov Girl é o ponto de ruptura para abalar o mundo seguro do protagonista. Uma paixão imediata se desenvolve no homem que passa a procurá-la insistentemente. A busca o faz se desviar gradativamente da sua programação, o que é filmado criativamente por Shawn Levy para articular as linguagens dos videogames e do cinema. Primeiramente, Guy se espanta com as etapas idênticas de seu dia e reage escolhendo uma versão ligeiramente mais casual da camisa azul para tentar algo diferente. Em seguida, a tentativa de escolher outro tipo de café na cafeteria causa um descompasso na programação dos personagens secundários daquela cena, como se eles tivessem um bug por falha no sistema, e o diretor ilustra muito bem a situação com elementos cênicos no fundo do quadro (um canhão sendo apontado para Guy) e o enquadramento da garçonete com um plano holandês (inclinação suficiente para simbolizar sua confusão mental). Mas, acima de tudo, a reviravolta se dá quando passa a usar um dos óculos antes exclusivos dos avatares dos jogadores no mundo real, pois permite enxergar a verdadeira interface de Free City com símbolos reluzentes nas locações, na indicação de missões, na representação de créditos e maletas com curas, entre outros.

Já seria positivo para a produção incorporar elementos visuais dos videogames à cidade onde vive o personagem principal, mas o roteiro assinado por Matt Lieberman e Zak Penn vai além e torna a dinâmica dos jogos a característica central de outros conflitos narrativos. No mundo real, Millie joga Free City com seu avatar para encontrar provas que incriminem Antwan por ter roubado a propriedade intelectual que havia criado junto com Keys para programar um jogo de observação, interação e desenvolvimento de figuras de inteligência artificial até a obtenção da consciência. Tendo a ajuda do colega para transitar pelos espaços daquele universo, ela controla Molotov Girl para cumprir seu objetivo como se estivesse em uma missão: precisa encontrar uma recompensa, enfrenta inimigos, passa por confrontos com seus antagonistas, encontra em Guy um aliado e avança por diferentes fases até a conclusão da jornada. A oposição entre os personagens também segue a linha dos games, cabendo a Jodie Comer e Joe Keery criarem uma dupla de herói com uma tensão sexual e a Taika Waititi construir um vilão exagerado, cheio de trejeitos vocais e conscientemente afetado.

Estabelecidos os núcleos e os choques entre realidade e virtualidade, o filme avança entre alguns momentos mais e menos inspirados. De um lado, o contraste entre a vida asséptica de Guy (evidenciada pelas cores lavadas do cenário e do figurino) e a explosão de cores da interface gamer de Free City (uma estilização registrada nas sequências de ação vividas apenas por Guy ou em parceria com Millie/Molotov, por exemplo, o confronto com vários antagonistas em uma garagem e a fuga do lugar ao som de “Make your own kind of music“) e a atuação carismática de Ryan Reynolds com excelente timing cômico enriquecem a experiência de comédia, ação e ficção científica proposta. Inclusive, o ator confere humor ao seu personagem sem precisar repetir a fórmula provocativa de “Deadpool“, até porque este novo trabalho exige uma composição mais inocente e heroica – o que fica patente na repercussão que o Cara da Camisa Azul ganha dentro e fora do jogo ao passar rapidamente de nível com seus atos de heroísmo. Por outro lado, o arco narrativo de Guy não tem uma abordagem tão original no que se refere à descoberta de que ele seria um algoritmo fabricado para ser um figurante, repetindo o que já foi abordado em outras obras a respeito da busca pela autonomia de poder escrever sua própria história.

A progressão da trama define um caminho mais inspirado quando Shawn Levy e seus roteiristas aproximam explicitamente o virtual do real na linguagem e nas críticas sociais elaboradas. O trio invoca lembranças de “O último grande herói” sempre que as ações dentro ou fora do jogo se retroalimentam, sobretudo quando os planos alternam entre o avatar interpretado por Channing Tatum e os comandos do jovem jogador que o controla, e a montagem paralela encadeia diversos depoimentos de pessoas em lives ou em vídeos do YouTube comentando os acontecimentos de Free City (por sinal, incorporando o layout dessas plataformas digitais na composição do quadro). O vaivém entre as duas realidades também é precisa ao pontuar o que é uma construção artificial proposital (nada melhor do que os nomes Guy, termo em inglês para “cara”, e Buddy, termo em inglês para “parceiro”, para indicar explicitamente quem os dois personagens seriam no universo do jogo) e o que são críticas reais à indústria dos games, em especial à busca pelo lucro, a padronização das obras e a violência dos videogames, dentro da perspectiva dos desenvolvedores e dos NPCs.

Free Guy – Assumindo o controle” até pode soar como uma salada mista de referências de videogames e filmes à medida que a narrativa flui. Além das produções já citadas, a repetição da rotina de Guy evoca também “Feitiço do tempo” e “A morte te dá parabéns” e o clímax cita o universo Marvel e seus heróis (algo que, para alguns, pode ser interpretado coerentemente como easter aggs gratuitos). Em outro ângulo, pode não conseguir lidar tão bem com a comédia de toques existenciais acerca da ideia de que qualquer pessoa deve poder fazer o que seu livre arbítrio permitir, mas ser bem-sucedido na combinação entre comédia nerd, ação, ficção científica e doses de comédia romântica. Ainda que não seja uma experiência que revolucione esses gêneros ou tenha momentos inesquecíveis, propõe quase duas horas de um entretenimento sólido que diverte pela maior parte do tempo. Uma diversão que vai no material base dos videogames e trabalha possibilidade interessantes de encontro entre as duas formas de linguagem.