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“GRANDE SERTÃO” – Uma difícil, mas muito boa, adaptação

Poucos cineastas são capazes de adaptar o teatro nacional quanto Guel Arraes, como se depreende de obras como “O auto da compadecida” e “Lisbela e o prisioneiro”. Com GRANDE SERTÃO, o desafio da adaptação é ainda maior em razão das idiossincrasias do texto original, porém o trabalho do cineasta honra o clássico.

O filme é narrado por Riobaldo, que conta a história de como chegou a atuar em uma comunidade periférica – o Grande Sertão – ao lado do chefe da criminalidade local, Joca Ramiro, e seu amigo de infância, Diadorim. Riobaldo busca dar sentido a eventos da sua vida, como um trágico acidente e o reencontro a Diadorim, mergulhando cada vez mais em uma guerra entre os criminosos e os policiais, comandados pelo Coronel Zé Bebelo, por quem ele nutre apreço mesmo como adversário.

(© Downtown/Paris / Divulgação)

Guel Arraes certamente encontrou dificuldades para a transliteração do romance escrito por João Guimarães Rosa em filme tanto em termos de direção quanto de roteiro (coescrito com Jorge Furtado). Isso se deve, antes de tudo, às peculiaridades do texto de Guimarães Rosa, cuja narrativa não é linear e emprega neologismos e regionalismos. Arraes mantém Riobaldo como narrador, inclusive com a quebra da quarta parede, facilitando ao público a compreensão da progressão narrativa (quase toda linear). Até certo ponto, o diretor é fiel ao original graças a uma dose de teatralidade: as atuações são exageradas; as falas, além de muitas vezes extraídas sem modificação, ganham um tom poético com as rimas; o design de produção tem uma artificialidade que se assemelha ao teatral; e a iluminação é muitas vezes vertical. Porém, há uma modificação substancial que, na prática, atualiza o clássico: o contexto não é o mesmo (ainda que a vividez do sertão, com outro sentido, seja mantida).

Riobaldo não se torna um jagunço, mas se associa à criminalidade; o sertão não é literal, mas substantivo próprio que designa a comunidade onde tudo ocorre. Em virtude disso, o diretor transporta a trama para um cenário bem menos sertanejo e mais coerente com o crime organizado que se capilariza e permeia outras regiões do país. Por força da modificação, a guerra deixa de ser entre grupos de jagunços, mas entre uma organização criminosa e a polícia. Ainda assim, o raciocínio feito compõe a História brasileira, dada a associação da trama à aula sobre Tiradentes.

Ao contrário do que pode parecer, não há maniqueísmo, estabelecendo nuances para diferenciar o grupo de Zé Bebelo do de Joca Ramiro. Assim, há uma aproximação entre eles, como na cena em montagem paralela em que os líderes discursam simulando um espelhamento ou quando manifestam inconformismo com um confronto específico. Joca lidera quem atua contra a lei, porém os comandados por Zé também atuam à margem dela, dada a corrupção policial. Quando criminosos e policiais se aliam, nunca há estabilidade. Zé e Joca são figuras messiânicas, aquele com pretensões que elevam a dubiedade da personagem (o que é elastecido com a ótima atuação de Luis Miranda), este ao demonstrar pulso firme na chefia de um Estado paralelo (aqui, há a ajuda do porte físico de Rodrigo Lombardi), cujas “sentenças” são de observância obrigatória tal qual as judiciais.

O poder é um dos assuntos centrais do livro e do filme, mas não o único. Há uma visão pessimista da guerra, que leva Riobaldo a questionar os temas humanos mais universais, principalmente a natureza humana e o amor. No primeiro caso, um dos seguidores de Joca, Hermógenes, exerce função relevante, dado que impulsiona a narrativa e também as reflexões filosóficas do protagonista (que, todavia, poderiam ser mais exploradas). É nesse contexto que surge a crença de que Hermógenes fez pacto com o Diabo (motivo da sua invulnerabilidade), o que justifica a atuação vilanesca de Eduardo Sterblitch, cujo tom superior aos demais faz sentido (assim como a maquiagem, com verrugas que, com seu rosto filmado em contreplongée, parecem chifres). Quanto ao amor, Guimarães Rosa estava à frente do seu tempo ao tratar de assuntos como gênero e sexualidade, inclusive de forma a não simplificá-los. Da mesma forma, Arraes admite que há homofobia e há aceitação, e que há coragem e há medo. A abordagem do longa é sempre delicada, seja no texto (“mão bonita do menino”), seja na encenação (os dois dormindo juntos, o beijo de Nhorinhá na silhueta…). Paralelamente à centralidade da guerra está a atração que Riobaldo sente por Diadorim, o que, contudo, é rejeitado por ele mesmo.

Talvez Luisa Arraes não tenha sido a melhor escolha para o papel de Diadorim. É verdade que sua atuação não está no mesmo nível visceral da de Caio Blat, que elabora três versões de Riobaldo (o professor, o criminoso e o narrador), distinguindo-as pela conduta exteriorizada (o tom de voz, o ritmo da fala, os trejeitos, o olhar etc.), além da caracterização visual (o figurino, o penteado, a barba etc.). Não há como competir com um protagonista complexo como Riobaldo, cujos conflitos internos e externos fazem com que seja direcionado pela intuição, salvo quando ela colide com os próprios valores, e cuja visão de mundo é norteada por um fatalismo (falando várias vezes em destino). Contudo, o problema é que Luisa Arraes – SPOILER A SEGUIR – não convence como uma mulher se passando por homem, de modo que a surpresa de Riobaldo ao saber isso não é crível (e a possível surpresa do espectador também pode ser minada) – FIM DO SPOILER. Não causa espanto a participação da atriz, porém, considerando que é filha do diretor e tem um relacionamento com Blat. Não obstante, independentemente disso e das mudanças narrativas, Guel Arraes mantém a ideia governante de Guimarães Rosa, assim como o espírito de sua obra. É essa, afinal, a parte mais essencial de qualquer boa adaptação (nesse caso, muito boa).