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“INVOCAÇÃO DO MAL 3: A ORDEM DO DEMÔNIO” – Outro olhar para a trilogia

Desde 2013, o circuito comercial voltou a dar maior atenção ao terror blockbuster. Enquanto o chamado por alguns de “pós-horror” circulava pelos cinemas com “A bruxa“, “Ao cair da noite” e “Hereditário“, o público também poderia apreciar sem ironias um conjunto de obras portador de apelo comercial e qualidades cinematográficas. No referido ano, James Wan lançou o primeiro “Invocação do mal” e atraiu interesse de espectadores causais e críticos; em 2016, o diretor retomou as histórias do casal Warren solidificando as características do universo pautado em eventos reais, uso eficiente de jump scares sem dispensar o lado atmosférico e outras escolhas estéticas instigantes. Cinco anos depois, a direção mudou e a necessidade de considerar mudanças para a abordagem de INVOCAÇÃO DO MAL 3: A ORDEM DO DEMÔNIO cresceu, tendo o cuidado de não podar distintas possibilidades de se olhar para um projeto tão conhecido.

(© Warner Bros. / Divulgação)

No terceiro capítulo da trilogia, o comando está nas mãos de Michael Chaves para adaptar fatos reais do trabalho dos demonologistas mais famosos do cinema contemporâneo. Ed e Lorraine Warren são chamados para, inicialmente, ajudar no exorcismo do pequeno David Glatzel e na luta pela salvação da alma do menino. Porém, a sessão não sai como esperado e o demônio possessor não é expulso definitivamente. Pouco tempo depois, os protagonistas precisarão auxiliar o jovem Arne a provar que o assassinato que cometeu foi fruto de uma possessão demoníaca.

James Wan sempre concebeu o terror sobrenatural das duas primeiras produções como algo palpável, que poderia ser construído com um efeito de realidade significativo. E não se tratava de apenas levar para dentro da narrativa o “baseado em fatos reais”, já que ele faz encenações a partir de uma sensação de realismo evocada pelos movimentos fluidos da câmera e por planos sequências. Já Michael Chaves evidencia de forma mais evidente uma construção visual plástica, na qual se pode perceber a interferência do cineasta na confecção das imagens sem a preocupação de fazê-las parecer realistas. Nessa outra perspectiva, a chegada de um padre à casa dos Glatzel faz referência direta à chegada do padre Merrin à casa dos MacNeil em “O exorcista” de 1973, devido a uma iluminação sugestiva. Mais adiante, o contraste entre fachos de luz amarela e vermelha sugere um contraste entre salvação e perdição, céu e inferno – com esses respectivos filtros, personagens são enquadradas pouco antes de cenas de assassinato.

Inclusive, os momentos de maior tensão ou de jump scares são feitos como se tentassem não ficar dependentes das escolhas formais de James Wan. A princípio, Michael Chaves segue a estética de seu antecessor, buscando integrar os sustos explícitos e uma construção atmosférica cuidadosa: a sessão de exorcismo é mais gráfica e carregada por conta do uso das imagens e dos efeitos sonoros, ao passo que as aparições demoníacas para David são sugestivas e criadas no fora de campo (por exemplo, toda a cena no banheiro de sua casa); a possessão de Arne é desenvolvida calmamente dentro de um contexto em que se pode assimilar a deterioração do jovem, enquanto a concretização da violência em torno dele é ocultada pela escuridão e por cortes da montagem. Por mais que o diretor crie situações muito mais angustiantes do que aquelas feitas em “A maldição da Chorona“, as tentativas de se diferenciar de James Wan (mesmo louváveis) não sustentam o mesmo nível de apreensão ao longo do filme, pois o terror depende muito da fotografia em detrimento de uma encenação que não mantém a mesma criatividade no uso da câmera.

Em outro aspecto, o diretor também se afasta das expectativas atribuídas à trilogia em função dos elementos até então recorrentes. Ao invés de seguir como uma trama predominantemente de residência mal-assombrada e/ou de possessão, ele reorienta a narrativa para ser uma história de investigação que tem julgamento em um tribunal e a jornada dos Warren para descobrir a origem de um demônio capaz de perseguir sua vítima sem necessariamente possuí-la permanentemente. Então, por um lado, Ed e Lorraine mostram suas facetas de detetives (pouco explorada até agora), viajam para diferentes locais, descobrem outro caso semelhante e montam um quebra cabeça através das pistas encontradas; por outro, a questão da possessão não é abandonada, mas reservada pontualmente como uma ameaça que ronda os protagonistas e Arne. Por conta disso, o roteiro de David Leslie Johnson McGoldrick tem o mérito de apostar em uma estrutura diferente e ainda se manter fiel às características clássicas, desenvolvendo outra mitologia com detalhes, descobertas e reviravoltas coerentes com seu universo.

À medida que os dois núcleos (a investigação do casal e a luta pela sobrevivência de Arnte) se desdobram, outra perspectiva particular é inserida: a objetividade minimalista das sequências de horror. Em geral, James Wan ampliava a escala das situações conforme o clímax se aproximava (cenário, personagens, interesses em jogo…), já Michael Chaves constrói momentos mais comedidos que não envolvem tantas variáveis. Na maioria das sequências, os conflitos se estabelecem com no máximo três personagens, em espaços delimitados pela trama e se resolvem sem ações grandiosas. É assim, por exemplo, que a vida de Arne corre risco dentro do presídio onde está (sozinho ou acompanhado pela namorada e por um padre) e os protagonistas são envolvidos pelo sobrenatural (cada um separadamente ou os dois ameaçados pela fonte de terror). Essa mise-en-scène contida se adequa a um conflito central que aborda o sobrenatural não de maneira isolada, mas o perigoso fascínio que ele pode exercer sobre certas pessoas – assim, o tom épico de algo além da razão humana é substituído por uma abordagem sóbria que se interessa pelo que a ação humana desencadeia.

Modificar o estilo da narrativa por si só não é um problema, uma vez que a alteração ainda faz parte do mundo de “Invocação do mal“. A grande questão é conseguir lidar bem com os novos aspectos introduzidos, principalmente a resolução emocional no clímax que vem da relação entre Ed e Lorraine. Por mais que Patrick Wilson e Vera Farmiga estejam cada vez mais seguros em suas personagens e o entrosamento entre eles se fortaleça a cada filme, a narrativa não se desenvolve contemplando momentos afetuosos para o casal ou vínculos afetivos em uma regularidade considerável (há apenas uma cena em que Lorraine conta como conheceu Ed). Desse modo, o desfecho que depende de uma construção emocional maior para eles não se concretiza completamente, afinal o que se viu anteriormente não serviu de preparação para o impacto do terceiro ato. Além disso, o mistério faz insinuações que não cumpre, como o letreiro inicial que sugere a ameaça mais assustadora já vista pelo casal e a presença maior do tribunal na trajetória dos Warren para provar ao júri a existência do mal.

O período que antecedeu a estreia de “Invocação do mal 3: A ordem do demônio” pode ter sido marcado por especulações e projeções negativas por conta da saída de James Wan do cargo de direção. No entanto, o terceiro capítulo da trilogia não é a frustração como alguns cogitaram, apesar de também não ser o melhor entre os três títulos. A troca de diretores indica que uma obra não precisa se fechar a um único estilo ou abordagem, sendo possível receber diferentes olhares e buscar outros caminhos (afinal, de que adiantaria assistir/produzir sempre o mesmo tipo de filme idêntico mesmo em uma franquia?). Consequentemente, é interessante observar como Michael Chaves confere uma visão diferente, ainda que não radicalmente diferente, para uma história contida sem as pretensões grandiloquentes de uma conclusão (inclusive, permitindo outras produções para uma franquia futura). Em contrapartida, algumas dimensões desse outro olhar mereciam um mergulho mais intenso, assim como as tentativas de evocar os filmes anteriores poderiam ter outra apropriação, como se sente na utilização apenas protocolar das imagens e sons reais do caso nos créditos finais.