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“JULES E JIM – UMA MULHER PARA DOIS” – Truffaut e a nova onda

Enquanto integrante da Cahiers du cinéma, Truffaut foi considerado por André Bazin, seu fundador, representante hitchcocko-hawksien dentre os críticos. Na nouvelle vague, o cineasta fez parte da ala mais popular do movimento (a rive droite ou “margem direita”) – que ele não considerava um movimento, mas uma característica. Independentemente dos rótulos que Truffaut recebe, há consenso quando se afirma que JULES E JIM – UMA MULHER PARA DOIS é um dos maiores exemplos da “nova onda” francesa.

Apesar de muito diferentes, o alemão Jules e o francês Jim se tornam grandes amigos. Em uma viagem para uma ilha grega, eles se encantam com o sorriso que veem em uma estátua, encontrando o mesmo sorriso em Catherine quando voltam a Paris. Enquanto Jules se apaixona perdidamente por Catherine e o trio vive momentos alegres, Jim tenta resistir à paixão pela mesma mulher.

Jules et Jim” é um exemplar impecável de cinema de autor, uma das maiores características da nouvelle vague. Ainda que tenha por base o livro de Henri-Pierre Roché, François Truffaut é mais do que o roteirista e mais que o diretor, é verdadeiramente o autor do longa. Um dos elementos mais marcantes de sua filmografia se faz presente naquela que não está no título, mas é central na trama: a Catherine da magnética Jeanne Moreau é uma femme fatale tal qual Julie de “A noiva estava de preto” (papel de Moreau em outro filme de Truffaut) ou Mathilde de “A mulher do lado” (Fanny Ardant, novamente Truffaut). Mathilde é Eros, Julie é Tânatos, mas Catherine é a união perigosa entre a pulsão sexual e o impulso destrutivo.

(© Les Filmes du Carrosse / Divulgação)

Catherine é uma personagem fascinante porque é o epítome daquilo que marcou a veia transgressora da nouvelle vague. Ela é um espírito livre, uma mulher que não abdica dos próprios prazeres por outras pessoas, sejam pessoas específicas, seja a sociedade como um todo. O disfarce masculino em um passeio com os amigos não é um mascaramento, mas um abraço ao laissez-faire pessoal que para ela tem tanto valor; é a mesma rejeição a padrões que faz com que ela se permita, ao brincar com a dupla principal, iniciar uma corrida antes da largada – afinal, Catherine está fora (não acima, não abaixo) de normas e referências quaisquer. Nem tudo, contudo, é motivo para alegrar-se, como se denota quando Jules expõe a Jim a insatisfação perene da moça e o medo de ser abandonado.

A “nova onda” francesa se pauta em assuntos banais; de fato não há nada extraordinário no plot, nada mais que dois amigos que se apaixonam pela mesma mulher. A narração voice over é rápida e por vezes acelera o ritmo da trama, reforçando outra característica formal do movimento, que é o desapego (ou, por vezes, a rejeição) à linearidade. Os minutos iniciais são velozes para aproximar Jim e Jules, nascendo uma amizade cujo desenvolvimento se torna mais complexo quando Catherine entra em cena. Personagens aparecem e retornam repentinamente, ou eventualmente nem retornam (é o caso de Sabine, que surge em um salto, sem permanecer muito tempo). A narração auxilia nessa função de introdução de personagens e progressão narrativa, mas também se ocupa de alguns pensamentos, como quando menciona que Jim, em pensamento, nadou junto de Catherine.

Oscar Werner tem em Jules um homem tímido, mas extremamente devoto à sua amada. Do seu interesse por Thérèse (Marie Dubois) é possível inferir um perfil que o atrai, é um perfil avesso a convenções como a monogamia. O Jim de Henri Serre é seu oposto em termos de personalidade e prefere a estabilidade que mulheres como Gilberte (Vanna Urbino) lhe podem fornecer em um relacionamento afetivo. Isso não significa, todavia, que Jim não tenha atração pelo mesmo perfil feminino que Jules. Na verdade, os dois costumam estar em lados opostos das mesmas batalhas, é assim em relação a Catherine e também é assim quando eles participam da Primeira Guerra. O “amor absoluto”, mencionado pelo narrador, que Jules dedica a Catherine, pode ser diferente do “amor relativo” de Jim por ela, porém são duas faces do mesmo sentimento. Enquanto Jim poderia estar comemorando a vitória na Guerra, como diz Jules, o que ele quer é justamente o que Jules aparentemente conseguiu, a despeito da derrota.

Jules e Jim são dois vértices de um mesmo triângulo – Catherine, é claro, é o terceiro. Imageticamente, Truffaut coloca o trio em diferentes janelas que, juntas, formam um triângulo; de maneira similar, ela fica no meio dos dois quando vão ao teatro. Entretanto, a obra do cineasta está distante de paradigmas formalistas (por exemplo, pela não utilização de decupagem preestabelecida), diferenciando-se também dos filmes de estúdio na prevalência de cenários externos. O uso de freeze frames quando Catherine mostra a diferença entre como ela era antes de conhecer a dupla e como ficou depois é um meio de quebrar a linearidade, mas também de tornar gráfica a subjetividade da personagem. Essas são técnicas que, em 1962, eram revolucionárias – para além da abordagem dada aos temas (vide a rejeição ao puritanismo dos costumes e a emancipação feminina, inclusive antes da revolução sexual). Por essas e outras, “Jules et Jim” entrou para a História como um dos principais nomes da nouvelle vague e seu autor como um dos maiores da sétima arte.