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“LIGHTYEAR” – Ao infinito, nada além

* Clique nos títulos para ler as críticas de: “Toy Story“, “Toy Story 2“, “Toy Story 3” e “Toy Story 4“.

Me lembro distintamente da perturbação que senti enquanto sentava na sala de cinema, há alguns anos atrás, e assistia à cena de abertura de “Toy Story 4“. Não posso dizer que me lembro dela em detalhes, mas aquilo que sobra na memória é significativo: na cena, chove. O reflexo de uma casa aparece em uma poça. Algo está errado, um brinquedo está perdido, talvez esteja sendo arrastado pela água corrente. Chove, chove, chove, é uma tempestade.

A fonte de tal perturbação, tal desconforto, tinha que ver com a dita chuva. Especificamente com aquela chuva, naquela noite, naquela rua. Com o fato de que ela parecia tão, tão real, seguindo a regra das tendências históricas naturalistas do cinema, e tão indistinguível das chuvas filmadas, fotografadas. Um clone assustador. Isso, penso, está intimamente ligado ao interesse recém-descoberto dos estúdios Pixar pela figura humana, seu corpo, seus pensamentos, seus sentimentos, suas histórias e suas essências, na realidade como experienciada por nós e por nós apenas. Isso é verdade, em diferentes níveis, de todo longa original Pixar desde “Up” (seguido de “Brave”, “Divertidamente”, “Viva”, “Dois Irmãos”, “Soul”, “Red”), e foi concebido, provavelmente inconscientemente, a partir de sua hoje icônica montagem de abertura. LIGHTYEAR dá continuidade a essas tendências, mais drasticamente do que nunca, é um filme que deseja investigar nossos problemas. Assim fazendo, abre mão de grande parcela do talento, que o estúdio tão brilhantemente expressava, para a fantasia e a mágica, para ver as coisas por outros olhos, para dar vida às coisas, para presentear o mundo com uma consciência.

(© Walt Disney Pictures / Divulgação)

“Lightyear” é o primeiro filme dessa nova leva que recusa quase completamente o imaginativo e o irreal. “Soul”, “Red” e “Viva”, todos brilhavam pontualmente quando essas características vinham à tona, resistindo a esses impulsos. Aqui, há pouco a ser salvo, e o que há é mera reciclagem (Sox, provavelmente o único personagem que redime o filme, cai, mesmo assim, em certa mesmice). A premissa do longa – a de ser protagonizado pelo personagem “real” que inspirara um dos brinquedos que inauguraram o estúdio, e fizeram escola – é em si a negação de um personagem cujo brilhantismo residia exatamente em injetar o heroísmo humano em um mero objeto. É de uma beleza louvável quando a Pixar anima pessoas tocando instrumentos, ou as lágrimas que caem dos olhos humanos, ou quando move os corpos de maneiras estranhas e adoráveis, mas aqui há pouca musicalidade, pouca lágrima, e animação pobre, insossa e descolorida é a maior prova disso. É tudo muito distante do encanto e emoção das obras-primas da percepção, alteridade e criatividade que eram “Vida de Inseto”, “Procurando Nemo” e “Monstros S.A.” A moral de “Lightyear”, similar à desses filmes, é também o bom e velho “o agora é que importa”, “as coisas pequenas são maiores que as grandes”, e coisas do tipo. Mas uma coisa é dizer, outra é mostrar – a armadilha na qual Hollywood tanto cai hoje em dia. É simbólico que os vilões, aqui, sejam precisamente as criaturas que, em outros tempos, interessariam tanto às mentes criativas do estúdio, seres alienígenas em um novo planeta, cujas formas de vida são completamente ignoradas para além de suas ameaças à sobrevivência da espécie humana, que, também simbolicamente, termina colonizando uma terra roubada.

O que muitos vêm dizendo sobre o filme é verdade: que ele se assemelha a um dos genéricos produtos da Marvel Studios, uma história de arcos bem delineados, antagonismos calculados e sentimentalismo fabricado, que se esvai da memória em poucos dias. Não é à toa, afinal, que a compra da Pixar pela Disney se deu alguns anos antes do lançamento de “Up“, e hoje ela parece ter pasteurizado todos os seus principais produtos (Star Wars, Marvel, Pixar) com máquinas de produção imediata (todos, diga-se de passagem, com uma curiosa obsessão com as aventuras espaciais atrelada a uma paradoxal falta de imaginação, um apego ao humano e uma recusa do fantástico). “Lightyear” é, provavelmente, o pior longa da Pixar, certamente o pior se desconsiderarmos as sequências. Pouco foi dito sobre a história do filme neste texto, também pouco sobre personagens, sobre estéticas. É porque, disso tudo, e suspeito que o mesmo valerá para a maioria dos espectadores, pouquíssimo sobrou na minha memória. E o que sobre, mais uma vez, é significativo.