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“MIDSOMMAR – O MAL NÃO ESPERA A NOITE” – Catarse coletiva

Segundo Aristóteles, catarse é a purificação das almas a partir de uma descarga emocional; na arte, o conceito passa pela geração de descargas de sentidos e emoções. São essas sensações que Ari Aster já havia feito em “Hereditário” com a progressão fatalista do enlouquecimento. Em MIDSOMMAR – O MAL NÃO ESPERA A NOITE, a própria catarse é o eixo estruturante de uma narrativa voltada para as experiências sensoriais que atingem os personagens e o público enquanto coletividades.

Cartaz de “Midsommar – o mal não espera a noite

O estilo de terror do cineasta é a sugestão, o ritmo narrativo cadenciado e o encadeamento de eventos insólitos que, calmamente, prepara a atmosfera para um clímax chocante. Essa ambientação rodeia Dani, após sofrer uma tragédia pessoal e acompanhar o namorado Christian e os amigos Pelle, Josh e Mark em uma viagem até uma vila na Suécia. Lá, participam de um festival de verão com os moradores de uma comunidade aparentemente simpática no que parecem ser férias tranquilas. Contudo, o pesadelo começa quando se veem envolvidos em estranhos rituais pagãos.

O ponto inicial em que os personagens se encontram é a cumplicidade instável. O namoro não corresponde às expectativas: Dani desamparada pelos problemas familiares, pelos ataques de pânico e pela insegurança de depender tanto do namorado, já Christian insatisfeito em ser a base emocional da namorada e se sentindo mais próximo dos amigos. O sentimento de parceria recíproca até pode variar no primeiro ato – o enquadramento dos reflexos de Christian no espelho, primeiramente, o mostra distante de Dani (quando ela descobre que a viagem já estava marcada sem seu conhecimento) para, em seguida, mostrá-lo reassumindo alguma proximidade com ela (quando a chama para viajar sem a ciência dos amigos) -, porém sempre está desequilibrado. É interessante notar como Ari Aster constrói a tensão inicial ora de modo gradual (filmando sem pressa as sequências ao redor da tragédia pessoal de Dani), ora de modo econômico (a recorrência dos ataques de pânico com um raccord entre cenas no banheiro de um apartamento e de um avião).

O espectador não apenas sente a fragilidade dos vínculos coletivos entre os personagens, mas também divide com eles experiências sensoriais. Assistindo ao que está em tela, a sensação predominante é o estranhamento frente ao incomum já no caminho para a vila. O diretor faz as emoções extrapolarem o espaço fílmico devido ao posicionamento invertido da câmera no trajeto pela estrada – alusão ao mundo ficando de cabeça para baixo e fora da realidade conhecida -, ao design sonoro de ruídos dissonantes e incômodos – a partir do uso de drogas pelos amigos – e às sequências criadas durante o intervalo da viagem quando os efeitos das drogas aparecem através de alterações na textura da imagem – indicação da jornada transcendental em que embarcaram.

Ao chegarem ao destino, a vida comunitária do local se destaca, demonstrando aos visitantes como pode haver uma comunhão entre pessoas que compartilham algo importante. A própria comunidade transborda vivacidade e comprova sua ocupação e funcionamento por moradores que possuem sintonia entre si: a profundidade de campo é grande para situar a ação dos protagonistas e a realização dos rituais sempre em foco e, assim, confirmar que há sempre algo acontecendo; a mixagem de som ressalta essas constantes atividades através do choro de um bebê, da utilização de instrumentos musicais, dos cânticos rituais ou das próprias performances ritualísticas; e o figurino traz túnicas e vestimentas de cores claras com adereços retirados da natureza, que contrastam com as roupas escuras dos visitantes e assinalar o senso de pertencimento entre eles e com a natureza.

A aparência de tranquilidade, hospitalidade e ternura dos anfitriões, contudo, oculta camadas brutais mais profundas. Novamente a condução estilística de Ari Aster reafirma o tema da produção também nos momentos chocantes. O design do grandioso dormitório traz imagens de “contos de amor” com passagens violentas; a coreografia disciplinada dos rituais evoca a integração dos moradores e aspectos misteriosos ou angustiantes de suas crenças (como se veem nas sequências da refeição com dois anciãos e da escolha da Rainha de Maio); e a alternância entre silêncios, ruídos inquietantes e trilha sonora de notas dinâmicas e crescentemente perturbadoras estabelece a tensão progressivamente. Além disso, o avanço para o clímax violento jamais esquece a união da comunidade e seus princípios integradores: o misticismo, a aceitação da naturalidade da morte, a organização da vida através dos ciclos da natureza e a exclusão de quem não se adapta ao grupo.

Sentir-se ou não pertencente a algo maior que a própria individualidade também acompanha os arcos dos personagens. Pelle, Josh e Mark são os sujeitos que traem suas amizades ou o respeito por outras culturas em nome de interesses próprios ou da incapacidade de lidar seriamente com o diferente. Christian oscila entre relacionamentos de aparência que não conferem o devido valor à namorada, aos amigos ou ao próprio trabalho como arqueólogo. Já Dani atravessa uma dura jornada em busca de laços afetivos que a permite ter uma “família” para confiar e se identificar, envolvendo decepções com o namorado e escolhas aterrorizantes.

Em “Midsommar“, Ari Aster utiliza os relacionamentos interpessoais e a procura pelo pertencimento a uma coletividade como essências para sua história de terror psicológica. Desviando-se de uma narrativa convencional com uma trama facilmente delineada, o filme se propõe a ser uma experiência sensorial de medo, estranhamento, repulsa e desenraizamento que estimule a catarse em múltiplos níveis: são os personagens vivenciando suas próprias purgações enquanto tentam se encaixar em comunidades ou fracassam em se relacionar com outras pessoas; são os espectadores experimentando sensações vividas pelos personagens e dividindo na plateia do cinema as reações estranhas de assistir à produção. Uma experimentação artística que estimula a catarse em diferentes alvos e na percepção do ser humano como ser social e coletivo.